segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O Profeta do Orvalho. Poesia. Wenceslau Moraes. José Jorge Letria. «Em tantos lugares me perdi que hoje, para me encontrar, não me basta nem mapa, nem bússola, nem sextante»

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O Profeta do Orvalho
[…]
Há na tua boca o frio das Palavras
feridas pelo gelo do vento. Responde-me,
que eu não posso ficar sem uma voz
que seja o rasto e o eco do que eu digo,
que seja o timbre do que eu canto.
Emudecida, deixas-me assim entregue
a este duplo e aterrador exílio:
o do coração e o da terra, indefeso,
a ver-te subir, alada e leve,
até ao céu onde se perdem os nomes
da glória dos deuses e dos santos.
Se um dia voltares, que seja
pela fímbria das praias da neblina
onde tudo se agiganta e se desfaz.

Eu nunca proporcionei felicidade àqueles que amei
porque nunca soube o que é ser feliz.
Será, talvez, este adormecimento dos sentidos
que apazigua em mim as dores ancestrais e ferinas,
que me põe no sono o bálsamo das noites sem temores.
A felicidade é uma deusa esquiva e tumultuosa
que mal se deixa tocar pelos dedos vacilantes
de quem a quer dominada e cativa.
Ela que tudo tem para dar, para partilhar,
outra coisa não fez senão recusar-me
o consolo de uma concha de água
nas horas delirantes e embravecidas da sede.
Nunca mais lhe dedicarei preces nem oferendas,
porque o meu tempo não serve para conjugar
os verbos em que ela se corporiza e ganha voz.

Poema de Wenceslau Moraes, in ‘O Profeta do Orvalho

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