quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «Deixou a janela aberta, foi abrir a outra, e, em mangas de camisa, refrescado, com um vigor súbito, começou a abrir as malas, em menos de meia hora as despejou, passou o conteúdo delas para os móveis…»

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Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida. In Bernardo Soares

«(…) O moço estava à espera, do lado de dentro do quarto, com a porta aberta. Ricardo Reis viu-o da entrada do corredor, sabia que, em lá chegando, o homem iria avançar a mão serviçal, mas também imperativa, na proporção do peso da carga, e enquanto caminhava notou, não se apercebera antes, que só havia portas de um lado, o outro era a parede que formava a caixa da escada, pensava nisto como se se tratasse de uma importante questão que não deveria esquecer, realmente estava muito cansado. O homem recebeu a gorjeta, sentiu-a, mais do que a olhou, é o que faz o hábito, e ficou satisfeito, tanto assim que disse, senhor doutor, muito obrigado, não poderemos explicar como o sabia ele, se não vira o livro dos hóspedes, é o caso que as classes subalternas não ficam a dever nada em agudeza e perspicácia às pessoas que fizeram estudos e ficaram cultas. A Pimenta só lhe doía a asa duma omoplata por mau assentamento, nela, duma das travessas de reforço da mala, nem parece homem com tanta experiência de carregar. Ricardo Reis senta-se numa cadeira, passa os olhos em redor, é aqui que irá viver não sabe por quantos dias, talvez venha a alugar casa e instalar consultório, talvez regresse ao Brasil, por agora o hotel bastará, lugar neutro, sem compromisso, de trânsito e vida suspensa. Para além das cortinas lisas, as janelas tornaram-se de repente luminosas, são os candeeiros da rua. Tão tarde já. Este dia acabou, o que dele resta paira longe sobre o mar e vai fugindo, ainda há, tão poucas horas navegava Ricardo Reis por aquelas águas, agora o horizonte está aonde o seu braço alcança, paredes, móveis que reflectem a luz como um espelho negro, e em vez do pulsar profundo das máquinas do vapor, ouve o sussurro, o murmúrio da cidade, seiscentas mil pessoas suspirando, gritando longe, agora uns passos cautelosos no corredor, uma voz de mulher que diz, Já lá vou, deve ser criada, estas palavras, esta voz. Abriu uma das janelas, olhou para fora. A chuva parara. O ar fresco, húmido do vento que passou sobre o rio, entra pelo quarto dentro, corrige-lhe a atmosfera fechada, como de roupa por lavar em gaveta esquecida, um hotel não é uma casa, convém lembrar outra vez, vão-lhe ficando cheiros deste e daquela, uma suada insónia, uma noite de amor, um sobretudo molhado, o pó dos sapatos escovados na hora da partida, e depois vêm as criadas fazer as camas de lavado, varrer, fica também o seu próprio halo de mulheres, nada disto se pode evitar, são os sinais da nossa humanidade.
Deixou a janela aberta, foi abrir a outra, e, em mangas de camisa, refrescado, com um vigor súbito, começou a abrir as malas, em menos de meia hora as despejou, passou o conteúdo delas para os móveis, para os gavetões da cómoda, os sapatos na gaveta-sapateira, os fatos nos cabides do guarda-roupa, a mala preta de médico num fundo escuro de armário, e os livros numa prateleira, estes poucos que trouxera consigo, alguma latinação clássica de que já não fazia leitura regular, uns manuseados poetas ingleses, três ou quatro autores brasileiros, de portugueses não chegava a uma dezena, e no meio deles encontrava agora um que pertencia à biblioteca do Highland Brigade, esquecera-se de o entregar antes do desembarque. A esta horas, se o bibliotecário irlandês deu pela falta, grossas e gravosas acusações hão-de ter sido feitas à lusitana pátria, terra de escravos e ladrões, como disse Byron e dirá O'Brien, destas mínimas causas, locais, é que costumam gerar-se grandes e mundiais efeitos, mas eu estou inocente, juro-o, foi deslembrança, só, e nada mais. Pôs o livro na mesa-de-cabeceira para um destes dias o acabar de ler, apetecendo, é seu título The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain, irlandês também, por não singular coincidência, mas o nome, esse sim, é singularíssimo, pois sem máximo erro de pronúncia se poderia ler. Quem, repare-se, Quain. Quem, escritor que só não é desconhecido porque alguém o achou no Highland Brigade, agora, se lá estava em único exemplar, nem isso, razão maior para perguntarmos nós, Quem. O tédio da viagem e a sugestão do título o tinham atraído, um labirinto com um deus, que deus seria, que labirinto era, que deus labiríntico, e afinal saíra-lhe um simples romance policial, uma vulgar história de assassínio e investigação, o criminoso, a vítima, se pelo contrário não preexiste a vítima ao criminoso, e finalmente o detective, todos três cúmplices da morte, em verdade vos direi que o leitor de romances policiais é o único e real sobrevivente da história que estiver lendo, se não é como sobrevivente único e real que todo o leitor lê toda a história. E há papéis para guardar, estas folhas escritas com versos, datada a mais antiga de doze de Junho de mil novecentos e catorze, vinha aí a guerra, a Grande, como depois passaram a chamar-lhe enquanto não faziam outra maior. Mestre, são plácidas todas as horas que nós perdemos, se no perdê-las, qual numa jarra, nós pomos flores, e seguindo concluía. Da vida iremos tranquilos, tendo nem o remorso de ter vivido». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT