sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Imitação da Felicidade. Urbano Tavares Rodrigues. «… queremos ir a la playa de Armaçón. Agora mismo. Você queda todo el dia por nuestra conta, quase que as mandava àquela parte, apesar da necessidade que tenho de viver. Então isto aqui é a casa da Joana, ou quê?!»

Cortesia de franciscosimoes e jdact

Maio
«Parece-me, às vezes, que se riem uma com a outra, por cima do meu ombro, que já estão as duas ao corrente, fazendo de conta que não. Mas, pode lá ser! Bem sei que estas tipas são diferentes da gente: têm outras concepções de vida, como elas dizem, são mais evoluídas... Ora, se assim for, que se lixe a moral: melhor para mim que menos trabalho tenho a esconder... Acordei, uma destas noites, na minha cama, ao lado da minha mulher, a sentir-lhe o calor do corpo encostado ao meu, toda enroscadinha, como costuma dormir, e juro que já nem sabia, cheirando-lhe a pele e o cabelo, em que cama estava nem que fêmea era aquela. Deixei-a sossegada porque embirra que a acorde, a menos que seja por causa do petiz, e fiquei-me a olhá-la, a imaginar o que seria se ela descobrisse. Dormia a sono solto e o que mais espécie me fez foi a sensação de uma distância enorme entre nós. Que criatura era aquela, agora que não podia fingir, que talvez  nem soubesse o próprio nome, nem que tinha por si as leis do matrimónio, o direito de gritar comigo, de me exigir dinheiro?... Aquele corpo quieto e estranho, respirando com tanta calma e indiferença, não batia certo com a imagem (quantas mais vezes triste e zangada do que mansa) da minha mulher de todos os dias e do todas as noites. Tinha um ar mesmo doce e razoável, como no tempo em que nos namorávamos. Ora nestes últimos anos estou avezado a vê-la sempre a reclamar. Até desconfio que só de sonhar ouvir-me os passos deixa logo cair o riso da boca. É para eu ver, é para meu castigo, como se fosse minha a culpa de esta porcaria de ofício não dar mais. Sim, porque esta chateação permanente, estas trombas que ela arranja em minha honra, é tudo por causa da falta de dinheiro.
Agora o Luisinho, Deus me valha, isso é que não é caso para brincadeiras. Se o rapaz está doente, nem que eu vá buscá-lo às profundas do inferno! Bem sei que me tenho descuidado. Convencido de que não havia de ser nada... Também em miúdo fui assim fraquito. Mas, se é a sério, então espera lá! Talvez ele necessitasse de ir para a serra. Ou de melhor comida. Que a gente, os mais dos dias, bastam-nos uns nabos com feijão. E ele não se contenta com pouco. Está a crescer, tem de criar forças. Raio da minha vida! E pensar que bebo uma imperial à minha conta quase todos os dias no café. E que desde que ando com estas marmanjas… Mas a coisa vai mudar, oh, se vai! Paga quem pode para quem precisa.
Levantei-me com jeitinho, para não destapar a Marta, que, mesmo no Verão, bota ainda em cima da roupa mais dois cobertores de lã, do lado dela, já se vê, e fui, pé ante pé, até à caminha do meu Luís. Piegas! Quem diria, quando me ouvem no barbeiro a enfiar palavrões uns aos outros e a achincalhar todas as gajas que passam, como os outros fazem (depois até me envergonho dessas bacoradas), quem há-de supor que me ajoelho assim diante do meu ,filho a dormir, como se estivesse em adoração, e que lhe beijo as mãos devagarinho, tão devagarinho que ele mal estremece?!...

Quando as tipas me entraram pelo carro adentro, sem mais nem mais, a atirar com as portas, que já andam a pedir conserto, e a professora começou a olhar-me para os dentes, como a um muar na feira, e a dar-me ordens, naquele espanhol do catorze que ela está convencida de que é português … queremos ir a la playa de Armaçón. Agora mismo. Você queda todo el dia por nuestra conta, quase que as mandava àquela parte, apesar da necessidade que tenho de viver. Então isto aqui é a casa da Joana, ou quê?! O que valeu é que a mais nova em tão gira, a cabrona, com aquele ar seriozinho e os olhos postos em mim, muito quietos, com umas rugazinhas muito queridas! Verdes até demais, olhos de sereia, assim com a água clara que a gente vê da borda das chatas, quando vamos a remar pelo meio das rochas...» In Urbano Tavares Rodrigues, Imitação da Felicidade, Publicações Europa-América, Mem Martins, colecção Século XX, 1988.

Cortesia de PEA/JDACT