sábado, 28 de dezembro de 2013

Viagem ao Fundo das Consciências. A Escravatura na Época Moderna. Maria do Rosário Pimentel. «Pela carta de 1472, restava aos moradores de Santiago levar para o tráfico ‘suas novidades e colheitas’; os escravos não podiam ser exportados, mas unicamente utilizados ‘para seus serviços e sua melhor vivenda e boa povoação’»

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Os Descobrimentos e o Tráfico de Escravos. Zonas de Resgate
«(…) À medida que o comércio de escravos se tornou uma prática regular, a costa africana foi dividida em sectores, consoante a abundância e a facilidade com que se recolhiam escravos. A área entre Arguim e o rio Senegal, a região da Guiné, a costa da Mina e Angola, foram consideradas as zonas negreiras mais rentáveis da costa ocidental africana. Estes sectores não tiveram simultaneamente a mesma importância e os seus limites nunca corresponderam a áreas territoriais precisas. São designações que tanto se referiam a grandes extensões do continente, como a zonas mais limitadas do território. É o caso do topónimo Guiné que, longe de corresponder a uma zona territorial bem delimitada, tanto se aplicava à vasta porção de costa africana entre o Senegal e o rio Orange, conhecida também por Etiópia Menor, Etiópia Arenosa, Etiópia Ocidental ou Negrícia, como se cingia à região costeira compreendida entre o Senegal e o norte da Serra Leoa.
Facto idêntico se verificava com os limites da costa da Mina, que tanto correspondiam às várias costas banhadas pelo golfo da Guiné (costa dos Dentes, do Marfim, do Ouro e dos Escravos), como a uma pequena área entre o cabo Monte, ou Mozurar e o cabo Lopo Gonçalves, que veio a ter como centro principal do comércio São João Baptista de Ajudá. Esta falta de rigor não só se relacionava com a confusão gerada pelos múltiplos baptismos que a costa africana foi sofrendo, mas também se ficava a dever à pressão de potências inimigas, que iam limitando as zonas de comércio pertencentes à soberania portuguesa. Inicialmente, o lugar de eleição para a obtenção de escravos, foi a área compreendida entre Arguim e a foz do rio Senegal. Após o estabelecimento de relações comerciais pacíficas (1446-1448), Arguim passou a ser o primeiro entreposto comercial da costa africana para resgate de escravos. Aí foi instalada a primeira feitoria de além Bojador. E, em 1449 ou 1450, o Infante fez o arrendamento deste comércio a uma sociedade de mercadores pelo período de dez anos, com o monopólio de todas as transações. Mais tarde, depois de construída a fortaleza em Arguim (segundo Cadamosto, iniciada em 1455), este comércio passou a ser monopólio da coroa. Por volta de 1455, o trato abriu mais para sul, na região dos rios Senegal e Gâmbia. Aqui, no reino dos jalofos, os portugueses obtinham escravos com abundância, a acreditar no testemunho de Duarte Pacheco Pereira. Este autor assinala que só no estuário do Senegal, quando havia bom resgate, os portugueses chegavam a tirar cerca de 400 escravos por ano.
Durante a segunda metade do século XV e sobretudo no século XVI, o tráfico dilatou-se mais para sul. As partes de Guiné, ou as áreas de tratos e resgates de Guiné, passaram então a ter uma importância extraordinária. Ao referir-se a esta região da costa da Guiné, que se situava entre o estuário do Senegal e o extremo sudeste da Serra Leoa, Duarte Pacheco Pereira calculava que, quando o comércio desta terra se encontrava bem organizado, se conseguiam por ano cerca de 3 500 escravos, ou mais, além de muitos dentes de marfim, ouro, panos finos de algodão e muitas outras coisas. Nesta zona, as ilhas de Cabo Verde, sobretudo a ilha de Santiago, situadas num importante ponto de encontro das rotas transatlânticas, transformaram-se num entreposto comercial considerável. A fim de facilitar a tarefa de povoamento da ilha de Santiago, Afonso V concedeu em 12 de Junho de 1466 uma carta de privilégios aos moradores, que lhes permitia navegarem para a costa africana quando entendessem, a fim de resgatarem os escravos de que necessitavam. Poderiam comerciar em qualquer parte da Guiné, excepto na área de Arguim, reservada à coroa. Para o efeito, os moradores de Santiago podiam levar todas as mercadorias que quisessem, excepto armas, ferramentas, navios e seus apetrechos. Em 1468, o rei, prosseguindo com a política de exploração da costa para além dos limites até então atingidos (Serra Leoa), arrendou a Fernão Gomes, por um período de cinco anos, os tratos e resgates da Guiné, com a condição de descobrir cem léguas de costa em cada ano a partir da Serra Leoa. Contudo, ficava-lhe interdito resgatar em Arguim e na zona do continente fronteiriça às ilhas de Cabo Verde, reservadas aos moradores daquelas ilhas. Por sua vez, estes não podiam negociar ou mandar negociar, para além da Serra Leoa.
A desobediência às limitações estabelecidas provocou conflitos entre moradores e contratadores, pelo que os privilégios concedidos aos moradores se tornaram cada vez mais limitados. Pela carta de 1472, apesar da área de resgate permanecer a mesma, restava aos moradores de Santiago levar para o tráfico suas novidades e colheitas; os escravos não podiam ser exportados, mas unicamente utilizados para seus serviços e sua melhor vivenda e boa povoação. Ficou igualmente interdita a parceria com não moradores, quer nacionais quer estrangeiros, assim como o fretamento de navios não registados na ilha». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.

Cortesia de Colibri/JDACT