segunda-feira, 9 de junho de 2014

Hora de Justiça. Amélia Janny. Costa Rodrigues. «… tal como ela foi, como a viu Teixeira de Pascoaes, alta e magra, duma leveza aérea no andar, que a desligava do solo empredado e lhe diluia a velhice no sorriso perpétuo dos seus lábios…»

Cortesia de wikipedia

«… Evoca hoje este Instituto de Coimbra Amélia Janny, uma curiosa figura de Mulher e de Poesia do puro romantismo coimbrão, que em Coimbra nasceu, em Coimbra viveu sempre em vida, que não foi curta, a sentir, a escrever e a declamar seus versos, inspirada no seu encanto e no seu culto. Será mais uma Hora de Justiça que chega e ao Instituto se deve, como, nos mais próximos tempos, as horas de Eugénio de Castro e de Mestre Gonçalves. Uma hora de justiça e também uma hora de reparação. Há muito se esbatera, ou quae apagara, na memória, tão frágil e incerta, desta terra, o nome que ela tantas, tantas vezes aclamara em festas de caridade, em comemorações cívicas, em ruidosas manifestações académicas, como o tricentenário de Camões, nos folguedos alegres do seu povo.
Depressa esqueceram os seus versos, que por aí se cantavam e sabiam de cor e se aprendiam sem esforço porque eram límpidos, de clara expressão, espontâneos, brotando, quase sempre, de uma impressão rápida, mas incisiva. Dela bem poderá dizer-se, ajeitando-lhe o pensamento do mal-aventurado Chénier, l’art ne fait que des vers, le coeur seu est poète, que a arte desses versos lhe vinha do coração, porque antes de tudo, os sentia. O culto da sua bondade, que aqui floresceu a par com o seu talento, esse mais depressa se amortece, ou quase extingue… Mas Coimbra é assim, como algumas mulheres caprichosas, inconstantes, ingratas no rumo ou no querer de seus próprios amores…
Ora se apaixona ou delira em entusiasmo excessivo e pródigo, nem sempre justo e medido, ora se esquiva, repudia até os que mais e melhor lhe querem… Regozijemo-nos, porém. Se o primeiro centenário do nascimento de Amélia Janny passou quase em injusto e doloroso silêncio, aqui nos reunimos hoje para avivar a sua memória, atenuando assim, ao mesmo tempo, mais uma culpa de ingratidão… E se, nesta casa, se mantém o pensamento inicial da lei dos nossos Estatutos, no regimento da sua vida científica e associativa, seja esta uma oportunidade para relembrar que, na sua tradição, viveu sempre o justiceiro preito aos que hajam merecido no cultivo das ciências, das belas letras e das artes exaltando seus méritos ou seus serviços. Não se quebrou, felizmente, a tradição.
E ainda bem que a figura de Amélia vai como que ressurgir nesta sala, tal como ela foi, como a viu Teixeira de Pascoaes, alta e magra, duma leveza aérea no andar, que a desligava do solo empredado e lhe diluia a velhice no sorriso perpétuo dos seus lábios (O Penitente). Assim vi eu ainda essa Senhora, na sua feminilidade encantadora, passar por essas ruas saudada com carinhoso respeito, com o prestígio do seu talento poético e da sua bondade, com a admiração por tudo quanto a tornou singular em Coimbra. Na verdade, Amélia não foi só a poetisa de tão inspirados versos, que primorosamente declamava, numa voz doce e clara, nem aquela delicada e cativante figura que, à sua volta e com largueza, soube espalhar o bem com simplicidade e com modéstia. Não; não foi só isso. Aquela sua casa, pequenina e acolhedora, da Couraça de Lisboa, tão cheia sempre da luz incomparável do sol de Coimbra, sobre o vale alegre do Mondego, a cujos sortilégios e encantos a poetisa se manteve sempre fiel, foi, por muitos anos, apetecido e obrigado lugar de reunião das mais proeminentes e festejadas e marcantes figuras da Coimbra das últimas décadas do século passado e dos primeiros anos do actual». In Costa Rodrigues, O Instituto, Universidade de Coimbra, Revista Científica e Literária, Coimbra Editora Limitada, volume 114, Coimbra, 1950.

Cortesia da UCoimbra/Instituto/JDACT