sexta-feira, 13 de junho de 2014

Questões de Literatura Portuguesa. A Busca de Sentido. Óscar Lopes. «Quanto aos gentios, frequentemente qualificados de ‘bestiais’, segundo critérios que têm que ver com a antropofagia, a nudez, a alimentação não cozinhada, ou tida como ‘imunda’ pelos padrões europeus…»

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Apologia e crítica contemporâneas da expansão
«(…) É claro que as frequentes sortidas para razia das aldeias, aprisionamento de camponeses e de gado que Zurara monotonamente descreve nas crónicas dos dois Meneses, pai e filho, condes de Viana, e os assaltos na costa ocidental africana para escravização e/ou resgate de azenegues e outros gentios, ou mouros, pouco se parecem com as andanças de cavalaria dos Amadises, mais tarde dos Palmeirins: a doutrina então vigente justificava-os pela oportunidade de conversão das almas e pela necessidade de meios materiais para aumento militar da cristandade. Vamos encontrar mais tarde condenações da escravatura em Fernão Oliveira e em Sá de Miranda, mas situadas num plano de utopia, inspirada, no poeta, pelo mito da Idade de Ouro. Mais impressionante é o facto de, fora das condições de luta ou de rapina ferozmente interessada, os infiéis e os gentios poderem ser encarados como seres humanos sensíveis, embora ainda não como partícipes de colaboração estável ou como objecto-sujeito de pura curiosidade recíproca. Num breve parágrafo da Crónica do Conde D. Duarte de Meneses em que se refere às aldeias de rurais magrebinos para, segundo a norma retórica de Tito Lívio, associar a sua audácia e tino militar com a sua fides punica (traduzida em termos de deslealdade islâmica), Zurara dá conta da pobreza e seminudez desses camponeses, comparando os seus casebres, onde dormem junto ao gado, com as casas rurais, de Entre o Douro e Minho. Em vários episódios de assalto de cristãos a alarves, azenegues ou gentios da encosta ocidental africana, é bem sensível, mesmo quando recalcada, a simpatia e até a admiração do narrador pelos assaltados, geralmente mal armados. E acontece que já antes, no saque subsequente à tomada de Ceuta, nós vemos alguns desses campónios portugueses, acostumados à miséria das suas choças, a desbaratar as despensas fartas e a refocilar nas camas brandas e moles, dos mouros desapossados, cujas vozes ouvimos, pouco depois, a lamentar-se, nos arrabaldes, não apenas dos bens perdidos, mas também do futuro corte de comunicação com filhos e outros parentes próximos em Gibraltar ou em Granada.
Quanto aos gentios, frequentemente qualificados de bestiais, segundo critérios que têm que ver com a antropofagia, a nudez, a alimentação não cozinhada (ou tida como imunda pelos padrões europeus), a falta de limpeza, o comunitarismo social, a sua inacessibilidade ao trato, e a religião não-monoteísta, rapidamente foi reconhecida a sua condição humana e apreciada a sua convertibilidade ao cristianismo, bastante mais fácil que a dos islamitas. Isso não os livrou da escravização pelas armas, ou da sua compra quando já escravizados nas lutas intertribais que o próprio trato negreiro estimulou. Na conhecida cena de Zurara relativa à partilha, em Lagos, do primeiro grupo numeroso de escravos gentios, apresentados por Lançarote, há dois traços característicos que o cronista sublinha como inerentes à exemplaridade do retrato do infante Henrique. Por um lado, nesse acto inaugural e portanto inédito de uma nova fase moderna da escravatura, o narrador entende dar vivacidade a uma reacção emotiva pessoalmente sua, pedindo a Deus que perdoe as suas lágrimas provocadas por simples simpatia humana, perante a violência de um repartir de reses humanas que nem sequer respeitava os laços de mãe e filho, enquanto o infante, a cavalo, e encarando as coisas de um modo tido como mais consequentemente religioso, considera com grande prazer na salvaçom daquelas almas que ante eram perdidas. Por outro lado, Henrique redistribui imediatamente o quinto dos cativos que lhe cabe em quinhão, comprovando, mais uma vez, aquela sua ética de mero serviço proselítico de Deus e de uma honra desinteressada que-encaminha todos os ganhos para galardão dos executantes directos, ou para prossecução do serviço à causa». In Óscar Lopes, A Busca de Sentido, Questões de Literatura Portuguesa, Editorial Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3, Conferência proferida no Congresso Le Caravelle Portughesi sulle vie delle Indie, Milão, 1992.

Cortesia de Caminho/JDACT