segunda-feira, 2 de junho de 2014

José Régio. O Eu Superlativo. O Ciclo Romanesco ‘A VELHA CASA’ e outros Escritos Autobiográficos. Manuel José Nunes. «As críticas de João Gaspar Simões aos romances de A Velha Casa, assim como as que fez aos de A Criação do Mundo, de Miguel Torga, assentaram em certa medida na denúncia da propensão lírica destes romancistas»

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Resumo
«O ciclo de romances A Velha Casa, considerado por José Régio (1901-1969) a obra capital da sua produção literária, é um texto que articula invenção romanesca com escrita referencial, situando-se, assim, no domínio da ficção autobiográfica. A preocupação do autor em revelar uma imagem de si não se manifesta unicamente em textos como as Páginas do Diário Íntimo e a Confissão dum Homem Religioso, estando igualmente presente na lírica, na ficção narrativa, na dramaturgia e até na sua ensaística. É pela combinação de todos estes textos que se apreende o eu superlativo de Régio. O trabalho começa por perspectivar a condição e a poética da literatura autobiográfica para chegar à compreensão da obra do escritor de Vila do Conde e Portalegre, em especial aos seus cinco romances do ciclo A Velha Casa, publicados entre 1945 e 1966».

O objectivo é a leitura crítica do ciclo romanesco A Velha Casa, de Régio, segundo critérios de análise e interpretação que possibilitem a identificação da sua dimensão autobiográfica. Uma nota se impõe, desde já, a este respeito, tanto em relação às perspectivas teóricas que consideram a impossibilidade de qualquer escrita autobiográfica (porque o escritor não pode narrar a vida e a escrita será sempre uma forma de a inventar), como às que garantem que tudo o que o romancista escreve é autobiográfico (pois o escritor apenas é capaz de falar do que conheceu, das experiências por que passou e das vivências que teve). Não se orientando em ordem a qualquer uma destas posições, e considerando embora a dificuldade inerente ao estabelecimento duma taxinomia dos subgéneros romanescos (romance de formação, histórico, psicológico, social, político, etc.), admite-se como hipótese válida a existência de instrumentos e métodos analíticos que permitem configurar no género romanesco um subgénero comumente designado na crítica de língua portuguesa como autobiográfico. Sendo o que se procurará demonstrar a respeito de A Velha Casa, cumpre salientar que qualquer romance pode admitir mais de uma classificação de género, segundo a perspectiva que se adopte ou a prevalência que se dê a uns ou outros aspectos do discurso e da história narrada. Neste sentido, o ciclo romanesco de Régio terá também características de romance de formação, de romance psicológico e, em certa medida, até de romance político, tendo em conta que uma parte não desprezível do texto aborda e questiona opções de ideologia e organização da sociedade. Nos critérios de fixação do autobiográfico, atender-se-á ao grau de identificação do protagonista com o autor empírico (por via do nome, da idade, da profissão e da biografia), mas também à forma de enunciação (a voz e o modo), ao cruzamento da ficção com a História e a realidade espácio-temporal, tendo em conta o metadiscurso, o paratexto e a intertextualidade endógena. Não se desprezará, pois, a biografia do autor, embora o propósito a seguir não seja nem biografista (conhecer o autor para compreender a obra), nem positivista (estudar a obra para compreender as condicionantes que afectaram o autor). Admite-se o recurso à biografia como pressuposto de identificação dum subgénero, embora o método a seguir privilegie a comparação textual entre aquilo que o autor diz por voz própria (escritos autobiográficos, ensaística, artigos de jornais) e o que deixa escrito nas suas ficções. É este exercício comparatista que permite fixar de forma segura a presença do autor empírico no seu texto. Face a um tipo de narrativa ficcional marcada pela mais pura invenção, há que reconhecer a especificidade das que se deixam atravessar, em maior ou menor escala, pela ilusão do espelho: miroirs d´encre, segundo a expressão adoptada por Michel Beaujour no título de um seu livro.
Factor de interesse acrescido no romance autobiográfico é ele poder servir para o autor dizer de si aquilo que não se dispõe a dizer nos seus escritos estritamente autobiográficos. De facto, a obra de ficção não compromete o autor empírico perante nenhuma esfera do real, permitindo uma sinceridade (ainda que veiculada por uma personagem outra) que nem sempre se faz presente na autobiografia. A dimensão autobiográfica de A Velha Casa, a sua genética e recepção crítica serão ilustradas em estudo complementar com a reprodução anotada de excertos de mais de cem cartas correspondentes a um conjunto de 888 enviadas por Régio a Alberto Serpa entre 18 de Setembro de 1927 e 22 de Junho de 1969. Um aspecto que se abordará é o preconceito, muito vivo ainda na primeira metade do século XX, em relação ao romance que pudesse ser entendido como autobiografia disfarçada. As críticas de João Gaspar Simões aos romances de A Velha Casa, assim como as que fez aos de A Criação do Mundo, de Miguel Torga, assentaram em certa medida na denúncia da propensão lírica destes romancistas, no facto de eles não se narrarem com os olhos de outros e obsessivamente se reproduzirem na pele das suas personagens. Neste sentido, a transposição de quadros da vida para as obras romanescas constituiria uma quebra dos protocolos da poética e uma violação inadmissível das bienséances. Esta posição crítica a respeito do romance autobiográfico induzirá os autores a uma atitude paradoxal: se por uma lado se procuram mostrar nas suas obras, é com dificuldade que o assumem, como se apostassem numa retórica do oculto e do indizível. Escondem-se do leitor, embora tudo façam para ser vistos, dispondo-se tanto a negar como a sugerir a dimensão autobiográfica das suas ficções. O autor de A Velha Casa não permaneceu imune, como se verá, ao estigma que então se abatia sobre os que privilegiavam o particular e o individual face ao geral e ao universal». In Manuel José Matos Nunes, José Régio, O Eu Superlativo - O Ciclo Romanesco ‘A VELHA CASA’ e outros Escritos Autobiográficos, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, 2012.

Cortesia de FCSH/JDACT