segunda-feira, 30 de junho de 2014

A História Nunca Contada dos Portugueses nos Campos de Concentração. Patrícia Carvalho. «Ao nosso camarada Belino este pequeno livro-recordação em que escreverá as datas memoráveis da nossa luta depois da formação em Eysses da nossa Amicale das B.I.»

Emílio Pereira foi deportado para o campo de Buchenwald, como atesta a sua ficha de prisioneiro
Cortesia de nelsongarrido

Com a devida vénia ao jornal diário Público

«(…) Apesar de toda esta informação, Luiz continuava a ser apenas um conjunto de dados inseridos pelos nazis em documentos oficiais. Mas a Revista 2 encontrou, nos livros de baptismo do distrito de Braga, o registo no qual o padre Joaquim Rodrigues da Silva certificava ter baptizado solenemente, na igreja de S. Paio de Figueiredo, em Guimarães, um menino chamado Luiz, que nascera naquela freguesia às oito horas da manhã do dia dezoito do mês de Outubro do ano de mil novecentos e dois, filho legítimo de Lourenço Ferreira Martins, jornaleiro, natural desta freguesia e de Joanna de Oliveira, tendeira de cotim e natural da freguesia de S. Martinho de Leitões, deste concelho de Guimarães. Luiz nasceu nove meses depois de os pais terem protagonizado o primeiro casamento do ano em Figueiredo, a 9 de Janeiro de 1902, e haveria de ser o mais velho dos seis filhos do casal. O pai especializou-se como funileiro e viu a vida melhorar, fazendo vários acrescentos à casa que entretanto adquiriu em Airão, Santa Maria, para onde a família se mudou. Hoje, a velha casa ainda existe, em ruínas, abandonada às silvas, e há pelo menos uma sobrinha de Luiz, filha da sua irmã mais nova, Ana da Glória, que continua a morar em Airão. Mas é em Joane, Vila Nova de Famalicão, que encontramos Amélia Martins, a sobrinha favorita de Luiz, com 62 anos e uma colecção de memórias do tio. Amélia foi quem mais se aproximou do tio, quando ele, comunista, regressou ao religioso e conservador Minho do pré-25 de Abril. Nos anos seguintes, Amélia nunca parou de trocar correspondência com ele, de o visitar em França e até de o acompanhar em eventos do Partido Comunista francês. Quando morreu, foi a Amélia que Luiz confiou a responsabilidade de cumprir os seus desejos. E é ela quem guarda os seus livros relacionados com a II Guerra Mundial.
Amélia recebe-nos com essa pilha de livros e também com um álbum de fotografias do tio, dedicado a este conflito e à Guerra Civil de Espanha. Entre os volumes que Amélia trouxe de casa de Luiz, em Lyon, depois da morte deste, aos 89 anos, há um livro chamado La Déportation, feito pela Fédération Nationale des Déportés et Internés Résistants et Patriotes, que contém a inscrição, em francês: Impresso especialmente para Louis Ferrera Martins Deportado em Buchenwald. Neste livro, Luiz introduziu folhas pautadas, escritas à mão e dirigidas a Amélia, com o objectivo de a ajudar a compreender melhor as imagens a preto e branco que ocupam quase todas as páginas. Estas pequenas notas, cheias dos erros naturais de quem pouco fora à escola e abandonara o país há décadas, são um documento precioso para preencher as lacunas deixadas pelos documentos nazis e pelas memórias de Amélia. O meu tio foi uma pessoa que cumpriu bem a vida, porque entendeu tudo muito bem, apesar de todo o sofrimento. Cumpriu o papel dele no mundo. Penso que não era daquelas pessoas que chega ao fim e diz: a minha vida foi uma perda de tempo. Ele não podia dizer isso. Ele tinha a ideia de que tinha feito tudo o que podia, conta Amélia, enquanto vai correndo os olhos e os dedos pelas fotografias espalhadas pela mesa.
Segundo Amélia, o filho mais velho de Lourenço e Joana chegou a estar emigrado com o pai em Inglaterra e em França, antes de um desentendimento entre ambos o ter levado a permanecer neste país. Acho que o meu tio tinha algumas queixas do meu avô, já quando trabalhavam aqui, e lá as dificuldades acentuaram-se. Acabou por deixar o pai e desaparecer, já com vinte e tal anos. O meu avô teve de regressar sozinho, que ele nunca mais deu notícias. A minha avó perguntava, queria saber do filho, e o meu avô dizia o rapaz fugiu. Nada a fazer, conta. Os pais de Luiz haveriam de morrer, ela com 83 anos e ele com 95, sem terem mais notícias do filho. Sem fazerem a mínima ideia se estava morto ou vivo e, muito menos, que passara quase cinco anos em prisões francesas e em campos de concentração nazis.
Luiz começou a sua vida em França, sozinho, não se sabe exactamente em que ano, mas em 1932, conforme escreveu numa das notas deixadas à sobrinha, já militava no Partido Comunista Francês. Foi sindicalista até morrer, em 1991. Em 1936, partiu como voluntário para a Guerra Civil de Espanha e por lá ficou até 1938, usando o nome de código Simon. Nas notas que deixou a Amélia, uma foi colocada junto à fotografia do Coronel Fabien (Pierre Georges), morto em 1944 na frente da Alsácia, com a indicação: Foi combatente comigo na 12.ª Brigada (Madrid 1938). Luiz integrou o Batalhão André Marty, liderado pelo comunista Fernand Belino e, quando ambos estavam já detidos na Prisão Central de Eysses, em França, o português é um dos prisioneiros que lhe oferece, a 7 de Novembro de 1943, um caderno, ostentando na capa um desenho de um voluntário das Brigadas Internacionais e um texto (com a assinatura, entre outras, de Luiz Ferreira) em que se pode ler: Ao nosso camarada Belino este pequeno livro-recordação em que escreverá as datas memoráveis da nossa luta depois da formação em Eysses da nossa Amicale das B.I.; como testemunho da nossa fraternidade e dos serviços que ele prestou como oficial do Batalhão André Marty. Nas notas manuscritas inseridas no livro La Déportation, Luiz refere: Desde 1940 a Resistência se organiza. Eu fui apanhado a 15 de Outubro de 1940. Outros seguiram o mesmo combate. Junto a uma fotografia da Prisão Central de Eysses, o português escreveu: Foi uma das minhas várias cadeias em França, antes de ser deportado [para] Buchenwald». In Patrícia Carvalho (texto) e Nelson Garrido (fotografias), jornal Público, Junho 2014.

Cortesia de O Público/JDACT