terça-feira, 1 de julho de 2014

Portugaliae Monumenta Misericordiarum Fazer a História das Misericórdias José Pedro Paiva. «Pela fortíssima propensão que, em quase todas, sempre existiu para a ajuda aos mais necessitados, através da concretização dos preceitos evangélicos do amor ao próximo…»

Cortesia de wikipedia

Fazer a História das Misericórdias
«As misericórdias ou Santas Casas da Misericórdia são inequivocamente uma das mais genuínas expressões da identidade, da cultura e da história de Portugal e da lusofonia. Se, como terá dito Alexandre Herculano, não é possível escrever a história de Portugal sem as misericórdias, tão-pouco é possível compreender e preservar a identidade e potenciar as capacidades destas ímpares instituições sem recurso à sua própria história, escrínio da rica cultura institucional e do acervo de valores que lhes está subjacente e se foi caldeando com o decurso dos tempos e a sucessão de múltiplas gerações e vivências. A história da saúde e das doenças em Portugal, das migrações internas e externas, da propriedade fundiária, da arte, da religiosidade popular, bem como da pobreza e da luta contra a exclusão, da assistência e da economia social ou do sistema penal e prisional no nosso país e noutros espaços da lusofonia, designadamente o Brasil, está em boa parte contida naquela memória e saber colectivo que se transmitiu no seio das misericórdias ou se encontra guardado nos seus preciosos arquivos. Consciente da importância, vastidão e riqueza deste espólio bem como da urgência de o preservar, ordenar e pôr à disposição dos estudiosos, a União das Misericórdias Portuguesas, retomando uma ideia há muito surgida no seio das misericórdias e infelizmente nunca concretizada. Do seu vasto programa de actividades e iniciativas a elaboração e publicação de uns Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Entendendo por certo que a comemoração pelo livro é a que maior valor tem, como escrevia Vítor Ribeiro, a propósito das comemorações do IV Centenário, a União das Misericórdias fomentou a todos os níveis que o V Centenário ficasse assinalado pela publicação de trabalhos e estudos que estimulem e permitam um maior e mais sólido conhecimento da natureza, história, especificidade e potencialidades destas tão portuguesas e universalistas instituições.
Das várias dezenas de importantes publicações que surgiram no contexto das comemorações pentacentenárias consideramos, porém, que a mais importante e fundamental é esta ordenação e colectânea de monumenta, ou seja, de documentos que, esperamos e acreditamos, constituirão a base e o instrumento imprescindível de toda a investigação e produção bibliográfica sobre as misericórdias em Portugal e no mundo lusófono. Porque a tarefa é larga e difícil, envolvendo muitas pessoas e instituições durante vários anos, com a mesma fé com que a propus, agradeço agora à Comissão Nacional para os 500 Anos, à União das Misericórdias Portuguesas e ao Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa terem posto ombros a tão ciclópica missão e solicito o apoio de quantos, de qualquer modo, nos puderem ajudar a levá-la a bom termo. Portugal e as suas misericórdias merecem-no. A bem de Portugal, da Solidariedade e da Cultura, bem hajam». In Vítor Melícias.

Introdução
«Pretende-se apresentar o projecto Portugaliae Monumenta Misericordiarum que com a publicação deste primeiro volume se desencadeia. Não é minha intenção, nem creio ser este o local apropriado para o fazer, proceder a uma sinopse, em tom mais ou menos encomiástico, do que tem sido a acção das misericórdias portuguesas no transcurso dos cinco longos séculos de existência que algumas delas já patenteiam no seu estatuto de identidade. Pela originalidade que assumiram no contexto do que foi a prática da assistência desde os alvores da Época Moderna no espaço europeu. Pela fortíssima propensão que, em quase todas, sempre existiu para a ajuda aos mais necessitados, através da concretização dos preceitos evangélicos do amor ao próximo, materializados em obras concretas de auxílio espiritual e material que ampararam os encarcerados que esperavam por justiça, atalharam a fome a quem não tinha que comer, sararam o corpo a quem o tinha doente, protegeram os meninos abandonados, abrigaram os desabrigados, enterraram os mortos e proporcionaram consolo e amparo a uma enorme legião de criaturas carentes que por eles ansiavam. Pela importância decisiva que, sobretudo até ao século XVIII, tiveram na estruturação e consolidação da sociedade e da rede de poderes locais. Pelo peso económico que muitas evidenciaram nas comunidades em que se inseriram. Pela promoção entre vários segmentos leigos da sociedade de uma espiritualidade centrada no valor dos méritos protectores propiciados por Nossa Senhora da Misericórdia e no culto da Paixão de Cristo, que se objectivava no amor confraternal, na compaixão pelos sofrentes, na prática de obras de caridade e num vasto conjunto de representações exteriores dessa piedade, que atingiram o seu paroxismo nas procissões de Endoenças, anualmente celebradas na quinta-feira santa. Pelo riquíssimo e específico espólio artístico que patrocinaram, em domínios tão variados como a arquitectura, a pintura e a escultura, e que fazem de algumas delas, nos nossos dias, verdadeiros tesouros da arte portuguesa. Pelo papel activo que desempenharam na afirmação da presença portuguesa e da própria autoridade régia nos territórios do que foi o seu extenso império ultramarino. Pela perpetuação dos laços afectivos entre os vivos e os mortos por via da instituição de centenas de milhar de missas de sufrágio, que alimentaram o quotidiano destas confrarias e estimularam uma piedade escatológica na qual o terceiro lugar, o purgatório, ocupava um espaço nodal. Pelos mitos que em volta da sua acção e funcionamento tantas vezes se geraram, justificando esforços redobrados para que se repense a memória que algumas de si próprias se forjaram e aquela que presentemente delas se transmite». In José Pedro Paiva, Portugaliae Monumenta Misericordiarum, Fazer a História das Misericórdias, Centro de Estudos de História Religiosa, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2002, ISBN 972-98904-0-4.

Cortesia UMPortuguesas/JDACT