domingo, 27 de julho de 2014

Historiografia Linguística Portuguesa. O Processo de Gramaticalização de Línguas extra europeias, Oceano Índico. Maria do Céu Fonseca. «Os gramáticos renascentistas ensaiaram as primeiras abordagens lexicográficas, coevas de narrativas e relatos de viagens, que, desde o início do século XVI, alimentavam a fabulação ocidental…»

Cortesia de wikipedia

Linguística missionária
«(…) Esta experiência de abordagem linguística repetiu-se um pouco por todo o lado onde chegaram portugueses e espanhóis. Em matéria de comunicação, era aos peritos nas línguas estrangeiras, bem como aos nativos já cristianizados e alfabetizados, que cabia, no momento das primeiras trocas de palavras com as populações desconhecidas, a função de línguas ou intérpretes: os chamados na Índia topazes (do dravidiano tuppasi) e no Extremo Oriente jurubaças (do malaio jurubahasa: juru perito e bahasa língua), isto é, aqueles que tratavam com os estrangeiros. Em todos os escritos (diários, cartas, crónicas) da época da expansão ultramarina, desde as primeiras descobertas de Diogo Cão no Zaire ou no reino do Congo (1483-86) a Pedro Álvares Cabral no Brasil (1500), passando por Colombo na América espanhola (1492), está presente a figura do intérprete com um relevo directamente proporcional ao destaque que merecia a situação de incomunicabilidade provocada pela ausência de tradutores. No caso da rota do Índico, acrescia o problema da multiplicidade linguística (devida ao mosaico étnico): muita diversidade de nações, não somente nas línguas, mas também nos costumes e feições do rosto, no sentido de aparência, refere o dominicano frei João Santos, missionário na Zambézia († 1622), ao descrever a costa oriental de África. O assunto é conhecido e vem agora à colação para melhor se compreender o quadro de onde emergiu a gramaticalização das línguas extra europeias, encetada no reinado do monarca João III (1521-1557) para línguas da Ásia e, algumas décadas volvidas, estendida aos territórios linguísticos de África e do Brasil. A necessidade dos intérpretes e, por outro, as notícias carreadas pelos missionários sobre o poderoso meio de evangelização que era falar as línguas indígenas condicionaram a política educativa ultramarina a agir em duas frentes: de um lado, o ensino do português, segundo o programa nebrijense das línguas companheiras do império; de outro, a aprendizagem das línguas exóticas ou línguas bárbaras. Longe de progredirem à margem uma da outra, as trajectórias destas duas frentes de acção confluíram no processo de sistematização gramatical das línguas extra europeias, primeiro agenciado no plano do apostolado da língua materna e, mais tarde, passada a época mental das cruzadas, valorizado de per si no quadro das actividades de missionação.
No espaço de missionação ibérica, este processo de gramaticalização avançou ao ritmo das primeiras descrições dos dois vernáculos peninsulares (português e castelhano). Na vizinha Espanha, a publicação da gramática de Nebrija e a descoberta da América por Colombo no mesmo ano de 1492 catalisaram a marcha da codificação linguística no novo mundo americano. Quanto a Portugal, os autores das duas primeiras gramáticas da língua portuguesa, Fernão Oliveira (1536) e João de Barros (1540), foram também os primeiros a tributar acolhimento ao espaço linguístico de reinos extra europeus, com abordagens de tipo lexicográfico. Do ponto de vista diacrónico, pode estabelecer-se a seguinte cronologia de ciclos historiográficos:
  • Os gramáticos renascentistas ensaiaram as primeiras abordagens lexicográficas, coevas de narrativas e relatos de viagens, que, desde o início do século XVI, alimentavam a fabulação ocidental sobre o mistério das letras sínicas e de todas as outras línguas estranhas ao modelo universal greco-latino; 
  • Em paralelo, manifesta-se a actividade linguística dos primeiros missionários, com descrições gramaticais de línguas do Oriente, que foi o objecto primordial das atenções do rei Manuel I (1495-1521). São desta época os primeiros instrumentos didácticos da língua tâmul. Em 1549, o jesuíta Henrique Henriques, considerado o primeiro ocidental a estudar de forma sistemática a língua dravídica, compôs a Arte da lingua malabar, que é a primeira gramática conhecida da língua tâmul . Também por esta altura, é publicado o catecismo em tamil Cartilha que contë breuemëte ho que todo christão deue aprëder pera sua saluaçam (Lisboa, 1554), versão tamúlica de um catecismo português feita por três malabares (com nomes portugueses: Vicente Nazareth, Jorge Carvalho e Tomé Cruz), que sabiam tâmul, português e latim. Esta cartilha é um bom exemplo da estratégia metodológica usada nestes manuais pedagógicos: além do registo trilingue,  no caso, tâmul, português e latim, que permitia uma aprendizagem linguística bilateral, o discurso em forma de questionário entre mestre e discípulo visava atingir pela vivacidade um público não iniciado nos preceitos da moral cristã; 
  • Finalmente, consolidou-se, no século XVII, o momento decisivo da produção linguística missionária portuguesa. Na Índia e Extremo Oriente, para além do concani e do tâmul, prenderam a atenção dos missionários jesuítas, primeiro o chinês e o japonês, este até aos últimos anos da dinastia filipina (1640), época em que o Japão se fechou ao contacto com Portugal; e depois o anamita a partir da segunda metade do século, quando, estabelecidos os contactos comerciais com o então chamado reino da Cochinchina, os jesuítas se instalaram naquelas paragens. Quanto a línguas de África, cujos primeiros textos e gramáticas datam do século XVII, parece ter sido a costa atlântica mais afortunada em estudos linguísticos, nomeadamente sobre o quicongo e o quimbundo. O facto tem provável explicação no contingente de escravos da África Ocidental, que começou a ser levado para o Brasil a partir de meados do século XVI. Note-se que o jesuíta Pedro Dias, autor da primeira gramática do quimbundo, missionou no Brasil antes de chegar a África, e a sua Arte da lingva de Angola (Lisboa, 1697) foi um precioso instrumento para a evangelização dos escravos negros do Brasil; e não será abusivo supor idênticos circunstancialismos no que respeita também à publicação de dois catecismos de quicongo e quimbundo».
In Maria do Céu Fonseca, Universidasde de Évora, Historiografia Linguística Portuguesa. O Processo de Gramaticalização de Línguas extra-europeias, Oceano Índico, Versão portuguesa adaptada de um texto que se apresentou no Colóquio Internacional “Écriture et construction des langues dans le sud-ouest de l’Océan Indien” Faculté des Lettres et des Sciences Humaines , Université de la Réunion, Revista de Letras, II, 2005, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro..

Cortesia da U. de TM e Alto Douro/JDACT