terça-feira, 22 de julho de 2014

A Bibliotecária. Dita Dorachova. Auschwitz. Antonio Iturbe. «… ou a disciplina sumária dos militares, fosse qual fosse a sua ideologia, tiveram uma coisa em comum: todos, sem excepção, perseguiram os livros com uma sanha feroz. Os livros são perigosos, fazem pensar»

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Auschwitz-Birkenau, Janeiro de 1944
«(…) A inspecção é outra coisa. É preciso formar, há buscas, por vezes os mais pequenos são interrogados numa tentativa de lhes arrancar informações tirando partido da sua ingenuidade. Nunca conseguiram sacar-lhes o que quer que fosse. As crianças mais pequenas compreendem muito mais do que as suas carinhas sujas de ranho dão a entender. Alguém sussurra: O Padre! E cresce um murmúrio de desolação. É assim que chamam a um sargento das SS (um Obersharführer) que anda sempre com as mãos enfiadas nas mangas do dólman, como um clérigo, mas cuja única religião conhecida é a crueldade. - Vamos, vamos, vamos!, diz vejo, vejo….! - E vejo o quê, senhor Stein? - Qualquer coisa! Pelo amor de Deus, filho, qualquer coisa! Há dois professores que levantam a cabeça, angustiados. Têm nas mãos algo que é rigorosamente proibido em Auschwitz e pode condená-los à morte se forem descobertos. Esses objectos, tão perigosos que a sua posse é motivo para a pena máxima, não se disparam, não são cortantes, perfurantes ou contundentes. Aquilo que os implacáveis guardiães do Reich tanto temem são apenas livros: livros velhos, sem capas, desfolhados, quase desfeitos, mas, são sempre páginas de conhecimento, por menor que seja o seu número para a literacia inerente a qualquer cidadão (se calhar…  colados numa coluna de uma biblioteca…, digo eu). Mas os nazis odeiam-nos, caçam-nos e proscrevem-nos com uma ferocidade obsessiva. Ao longo da História, todos os ditadores, tiranos e opressores, fossem arianos, negros, orientais, árabes ou eslavos, fosse qual fosse a cor da sua pele, quer defendessem a revolução popular, os privilégios dos ricos, o primado de Deus ou a disciplina sumária dos militares, fosse qual fosse a sua ideologia, tiveram uma coisa em comum: todos, sem excepção, perseguiram os livros com uma sanha feroz. Os livros são perigosos, fazem pensar.
Os pequenos grupos mantêm-se nos seus lugares, a cantar, enquanto esperam a chegada dos guardas, mas uma rapariga quebra a harmonia própria de um barracão de entretenimento e começa a correr por entre os círculos de tamboretes. - Para o chão! - Que estás a fazer? Enlouqueceste? - gritam-lhe. Um professor tenta agarrar-lhe um braço, para a deter, mas ela esquiva-se e continua a correr aos tropeções, quando o que se deve fazer é ficar quieto e passar despercebido. Trepa à lareira horizontal com um metro de altura que divide o barracão em duas metades e salta para o outro lado. Na sua louca corrida, derruba um dos bancos, que rola com estrondo pelo chão, silenciando por um instante todas as actividades. - Maldita sejas! Vais denunciar-nos a todos!, grita-lhe a senhora K, vermelha de fúria. As crianças, quando ela não pode ouvi-las, claro, chamam-lhe senhora Odre. E ela não sabe que foi a rapariga com que agora grita que inventou a alcunha. - Senta-te lá ao fundo com os ajudantes, estúpida! Mas a rapariga não se detém, continua a correr alheia aos olhares de reprovação. Muitas das crianças observam, fascinadas, como corre com as finas pernas enfiadas numas meias de lã às riscas horizontais. É uma rapariga muito magra, mas não doentia, com cabelos castanhos que balouçam de um lado para o outro enquanto ziguezagueia veloz por entre os grupos. Dita Adlerova move-se no meio de centenas de pessoas, mas corre sozinha. Corremos sempre sozinhos. Chega, a serpentear, ao centro do barracão, e ali abre caminho, aos empurrões, pelo meio de um grupo. Afasta com brusquidão um banco do seu caminho, e uma garotinha rola pelo chão. - Eh, o que foi que te deu!, grita-lhe a ofendida. Espantada, a professora de Bruno vê a jovem bibliotecária deter-se, ofegante, à sua frente. Sem tempo nem fôlego para dizer seja o que for, Dita tira-lhe o livro das mãos, e a professora sente-se de repente mais leve. Quando, instantes depois, reage para agradecer, já Dita vai a vários passos de distância. Faltam poucos segundos para que os nazis cheguem.
O engenheiro M, que viu a manobra, já a espera fora do círculo. Dita pega no livro de álgebra na passada, como se recebesse o testemunho numa corrida de estafetas. E corre com desespero para o grupo de ajudantes que, ao fundo do barracão, fingem varrer o chão. Ainda só está a meio caminho quando nota que as vozes dos grupos fraquejam por um instante, tremulam como a chama de uma vela quando se abre uma janela. Não precisa de se voltar para saber que a porta se abriu e os guardas SS estão a entrar. Deixa-se cair e aterra no meio de um grupo de rapariguinhas de onze anos. Enfia os livros debaixo do vestido e cruza os braços sobre o peito, para evitar que caiam. As crianças olham-na de soslaio, divertidas, enquanto a professora, muito nervosa, lhes indica com um gesto do queixo que não parem de cantar. À porta do barracão, depois de observarem o panorama durante alguns segundos, os SS gritam uma das suas palavras preferidas: - Achtung! Faz-se silêncio. Cessam as cantiguinhas e o vejo, vejo. Tudo se imobiliza. E, no meio do silêncio, ouve-se alguém assobiar a 5.ª Sinfonia de Beethoven. O Padre é um homem temível, mas até ele parece nervoso porque é acompanhado por alguém ainda mais sinistro. - Que Deus nos ajude, ouve uma professora murmurar. A mãe de Dita tocava piano antes da guerra e por isso ela reconhece a música de Beethoven». In Antonio G. Iturbe, 2012, A Bibliotecária de Auschwitz, Dita Dorachova, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-657-432-1.

Cortesia de Planeta/JDACT