quarta-feira, 16 de julho de 2014

Estudos de História da Cultura Portuguesa. Linguística e Paleo-Etnologia. Justino Mendes Almeida. «Os autores da chamada escola vicentina terão sido acaso subestimados, em virtude de uma espécie de sobrevalorização do teatro de Gil Vicente?»

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Obra da Geraçã Humana. Uma Bella Moralidade Quinhentista
«Pertence a Teófilo Braga a primazia na divulgação da Obra Famosissima tirada da Sancta escriptura chamada da Geraçã humana onde se representam sentenças muy catolicas e proveitosas per todo chrístã: Feita per huü famoso autor [...], ao chamar a atenção dos estudiosos para o exemplar, único hoje conhecido, existente num volume-miscelânea da Biblioteca Nacional de Lisboa (cota: Reservados 219 V)
Per huü famoso autor, fórmula invulgar, mesmo rara, mas não única, de aludir à autoria, leva-nos a mencionar um outro opúsculo, que se contém igualmente naquele volume-miscelânea, o n.º 29, assim intitulado:
Trovas / Novamente Feitas / do Moleíro. / Por tres authores muito graves. Que significado se ocultaria nestas designações estereotipadas, para além de meros fins publicitários? Os autores seriam mesmo famosos ou graves? A obra, já de si, era famosíssima... Exemplo mais esclarecedor é, talvez, o caso do Auto de Deos Padre, Justiça e Misericórdia, o n.º 3 da miscelânea, A qual obra vay enmendada / por huü muy famoso autor, como se afirma na parte inferior da portada deste auto cujo estudo corre comummente parelhas com a Obra da Geraçã humana. Ao incluir a Obra da Geraçã humana na rubrica dos autos anonymos, Teófilo Braga faz breve análise da obra e emite certos juízos de que não deveria alhear-se todo aquele que viesse ao depois a ocupar-se do Auto. Lembremo-los:
  • A estrutura do Auto é singularmente poética, e ainda hoje dava um belo tema para uma Oratória musical;
  • Não nos atrevemos a atribuí-lo a Gil Vicente, pelo facto dele ter deixado a sua obra coordenada antes de morrer; antes se poderá julgar tradução do Auto de accusacion contra el Genero humano, que se guarda na Biblioteca de Madrid;
  • A composição é mais antiga do que esta data [1536], não só pela linguagem, mas porque no prólogo se refere aos senhores infantes, isto é, aos filhos do rei Manuel I. O Auto parece imitado na sua estrutura, versificação e simbolismo, do Auto da Alma de Gil Vicente; a designação: Feyta per hum famoso autor bem poderia referir-se ao próprio Gil Vicente. Neste caso, porque não apareceria este Auto junto dos demais coligidos pelo próprio autor, e estando impresso em 1536? É pois o Auto da Geração Humana uma imitação de Gil Vicente por autor contemporâneo do poeta, e que já nesse tempo se considerava famoso.
Teófilo Braga não viria a alterar a posição que assumira acerca de um auto que, não obstante os aliciantes que oferecia, só meio século mais tarde despertaria verdadeiramente o interesse dos estudiosos. Razões de tal desinteresse? Seria caso para repetir aqui a pergunta já em tempos formulada por Maria de Lourdes Belchior Pontes: Os autores da chamada escola vicentina terão sido acaso subestimados, em virtude de uma espécie de sobrevalorização do teatro de Gil VicenteIn Justino Mendes de Almeida, Estudos de História da Cultura Portuguesa, Academia Portuguesa da História, Universidade Autónoma de Lisboa, O Pernix Lysis, Lisboa, 1996.

Cortesia da Academia P. de História/JDACT