segunda-feira, 14 de julho de 2014

Hospital das Letras. Ensaios. David Mourão-Ferreira. «… a um certo número de convenções formais. Sá de Miranda, porém, introduzindo uns e outras, revelou, desde logo, a clara intuição de que formas e conteúdos são entre si indesligáveis»

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Sá de Miranda. Inovação e Polemismo. Inovações temáticas e inovações formais
«Em Sá de Miranda, assim acontece com todos os inovadores, havia por força de manifestar-se o espírito polémico. Não que ele fosse, de natureza, homem de génio combativo, da estirpe de José Agostinho ou de Camilo, fundibulário por gosto e vocação. Mas inovar é abrir uma brecha no muro da rotina, é deslocar portanto pedregulhos, que nos ombros do próprio vêm por vezes a cair. Que há-de fazer então o desgraçado? Esquivar-se? Já na esquivança, todavia, se insinuam noções de táctica de luta. O inovador, mesmo sem querer, em breve passa à ofensiva. E trata de converter em clava, mais tarde ou mais cedo, o camartelo que tem nas mãos. Que Sá de Miranda foi inovador, ninguém o nega. Negam-lhe, não raro, tudo o mais; ou quase tudo: o calor da emoção, a força do instinto, os rasgos da fantasia. E aqueles (não são poucos) para quem a poesia a isto se reduz, não tardam em proferir a sentença: Inovador, vá lá… Poeta, não!
Outros, menos extremistas, mais conciliadores, contentam-se em aprovar, sorrindo, o pitoresco rabo-leva com que um jocoso do século XVII (Diogo Camacho) o definiu: Poeta até o imbigo, os baixos prosa. Já não é pouco. Quantos podem gloriar-se, de entre os seus pares, de poetas no coração e na cabeça? Resta saber, por outro lado (e foi tese durante muito tempo sustentada por um Ezra Pound e também por um Eliot), até que ponto serão necessários os sólidos fundamentos da prosa numa autêntica estrutura de poeta. Mas perguntaremos ainda se não é de poeta em corpo inteiro ter sido inovador como ele foi. E quais são afinal as inovações que se lhe devem? Por aqui mesmo se tem de começar. Consistem elas, se não erramos, na introdução, e progressiva aclimatação à língua portuguesa, dos seguintes elementos: um novo metro, o decassílabo; novas combinações estróficas: o terceto, a oitava, o soneto; novos subgéneros líricos: a carta, a canção, a elegia, a écloga (pelo menos, a écloga em mordes italianos).
A introdução de cada um destes elementos comportou, decerto, problemas específicos e desenvolveu-se, sem dúvida, em circunstâncias particulares. Cumpre, no entanto, reconhecer que se não trata de três planos distintos, mas antes intimamente solidários, constituindo uma unidade que importa assinalar: com efeito, os novos subgéneros apenas seriam viáveis através de novas estruturas e estas, por seu turno, repousavam todas na possibilidade de um novo metro. Assim, será quando muito legítimo distinguir entre os subgéneros, que pressupõem, rigorosamente, determinados conteúdos ou que se destinam, exclusivamente, a determinados estados de ânimo (circunscritos portanto a pré-estabelecidas áreas temáticas e emocionais), e as formas, que se caracterizam apenas pelo emprego deste ou daquele metro (o decassílabo, neste caso), desta ou daquela estrofe (o terceto, a oitava), desta ou daquela combinação de estrofes (o soneto), independentemente, em princípio, dos conteúdos que afinal de contas exprimam. Nos subgéneros haverá que respeitar, por conseguinte, um certo número de convenções temáticas, enquanto as formas terão de obedecer, em contrapartida, a um certo número de convenções formais. Sá de Miranda, porém, introduzindo uns e outras, revelou, desde logo, a clara intuição de que formas e conteúdos são entre si indesligáveis». In David Mourão-Ferreira, Hospital das Letras, Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1966.

Cortesia de GuimarãesE./JDACT