domingo, 27 de julho de 2014

Diálogo de Civilizações Viagens ao Fundo da História em Busca do Tempo Perdido. Gouveia Monteiro. «É no Oriente que devemos procurar o romantismo mais elevado. O Oriente não é tanto perspectivado à luz das suas diferentes culturas, mas evolução cultural do próprio Ocidente…»

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Variações sobre uma Ideia de Oriente
«(…) Segundo Edward Said, a palavra orientalismo tem três significados distintos que se podem naturalmente entrecruzar em momentos diversos da história do Ocidente. Em primeiro lugar, o orientalismo descreve a actividade académica, habitualmente realizada nos diferentes Institutos Orientais, que se centra no estudo e na investigação de diferentes tópicos, sejam eles artísticos ou filosóficos, linguísticos ou religiosos, das múltiplas culturas designadas como orientais. Em segundo lugar, deparamos com um sentido de orientalismo preocupado em estabelecer a distinção entre os modos de ser do Oriente e do Ocidente. Nesta tarefa, estão envolvidos não tanto académicos, mas antes figuras centrais da arte e da cultura ocidental, como é o caso de romancistas, poetas, filósofos e historiadores. Said designa este tipo de pensamento como orientalismo do imaginário, que constantemente dialoga com o orientalismo universitário. Em terceiro lugar, o autor enfatiza a existência de um terceiro tipo, nem universitário nem imaginário, de natureza mais política, interessado em definir o estilo mais apropriado de administração das regiões colonizadas pelos diferentes estados europeus.
O entrelaçamento destas três formas de orientalismo (académico, imaginário e político) tem na Índia, nos finais do século XVIII, uma exemplificação perfeita. Hastings, governador inglês de Bengala, decide melhorar a administração vigente e, em conjunto com a Companhia das Índias Orientais, promove o estudo dos textos sagrados da cultura indiana, envolvendo nessa tarefa, entre outros, um conhecedor do sânscrito, Wilkins. A publicação destas traduções, directamente financiadas pela gestão inglesa, galvanizará a imaginação ocidental desde o filósofo Emerson (a figura mais proeminente do transcendentalismo filosófico americano) até aos irmãos Schlegel (August e Friedrich), na Alemanha. Três formas de viver o Oriente, mas que, ao cruzarem-se a um ponto tal no início do século XIX, possibilitam a proposição, sem dúvida ousada, segundo a qual aquilo a que chamamos o romantismo não teria sido possível no Ocidente sem a presença hipnótica de um Oriente, desse sonho colectivo da Europa sobre o Oriente. É interessante assinalar que, na mesma época em que a Coroa britânica geria com argúcia a simbiose dos três tipos de orientalismo, deu-se um acontecimento histórico igualmente marcante na história do Ocidente: a invasão do Egipto pela tropas napoleónicas em 1798. E, uma vez mais, vemos o cruzamento destes três orientalismos, desde o cuidado extremo da administração francesa em não ferir as sensibilidades autóctones a um ponto tal que Napoleão era apresentado como o Muhammad ou Maomé Ocidental, até à presença de um corpo de estudiosos e académicos da mais variada proveniência (arqueólogos, químicos, biólogos) que criarão as bases da criptologia contemporânea habitualmente consignada na figura lendária de Champollion. A esta dupla vertente do orientalismo francês, político e académico, junta-se a voz do orientalismo da imaginação, corporizado, entre outros, pelo escritor Victor Hugo. Autor das Orientais, Victor Hugo não hesitará em afrmar que, se no século de Luís XIV ainda se poderia ser helenista, agora é-se orientalista. Este escritor irá ainda mais longe e dir-nos-á que o impacto do Oriente na nossa cultura só é comparável à descoberta da tradição helénica pelos renascentistas. Mas se, graças ao esforço de académicos como Wilkins ou William-Jones, se descobrem obras como a Sakuntalá, entre outras, o Oriente que sobressai é directamente proporcional ao seu poder de impacto sobre a identidade ocidental. Schlegel, o filósofo e escritor alemão dos princípios do século XIX, não poderia ser mais claro: É no Oriente que devemos procurar o romantismo mais elevado. O Oriente não é tanto perspectivado à luz das suas diferentes culturas, mas mais como uma categoria de inteligibilidade da evolução cultural do próprio Ocidente». In Carlos João Correia, Variações sobre uma Ideia de Oriente, João Gouveia Monteiro, Diálogo de Civilizações, Viagens ao Fundo da História em Busca do Tempo Perdido, Reitoria da Universidade de Coimbra, 2003, Imprensa da Universidade, Coimbra, 2004, ISBN 972-8704-37-2.

Cortesia da U. de Coimbra/JDACT