domingo, 27 de julho de 2014

Historiografia Linguística Portuguesa. O Processo de Gramaticalização de Línguas extra-europeias, Oceano Índico. Maria do Céu Fonseca. «A primeira obra escrita em português e numa língua africana que se editou em Lisboa, em 1624, foi a Doutrina cristã (…) traduzida na lingoa do Reyno do Congo…»

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Linguística missionária
«(…) Tal incremento da actividade linguística missionária no século XVII só parece ter sido possível com a cobertura de duas grandes instâncias: a Igreja de Roma e a Coroa portuguesa. Em relação às instâncias eclesiásticas, note-se que a defesa da aprendizagem das línguas orientais foi objecto de deliberação em decretos emanados dos cinco Concílios Provinciais de Goa, celebrados, entre 1567 e 1606, com representantes superiores da Ordem Franciscana e da Companhia de Jesus. Do primeiro ao último destes Concílios saem recomendações de que os sacerdotes aprendam as línguas das terras onde pregar, de que se traduzam compêndios de doutrina cristã em língua da terra, de que se façam livros para ensinar. Quer dizer, há uma insistente preocupação do poder eclesiástico em defender, entre curtos intervalos de tempo, a mais-valia da instrução vernácula. A mesma política fora prosseguida por autoridades civis. O movimento de promoção de línguas asiáticas encontrava eco da parte do poder político português, que, entre 1580 e 1640, esteve unido à coroa de Castela. Embora os interesses dos dois reinos vizinhos nem sempre fossem coincidentes, note-se que quando o Oriente era o objecto primordial das atenções de Portugal, os interesses de Espanha estavam centrados na América Latina, está patente, em diversos documentos do período da união dinástica, o empenho da administração de Portugal na difusão destas línguas, fosse por política diplomática ou conveniência de interesses. Exemplos desta atitude proteccionista encontram-se na correspondência trocada entre Lisboa e o Estado da Índia, no tempo em que reinava o monarca espanhol Filipe II (1598-1621). Cartas assinadas por punho régio obrigavam ao conhecimento das línguas locais por parte dos ministros da igreja e as respostas, assinadas por governadores da Índia, evidenciavam a ressonância das ordens régias.

Gramaticografia e lexicografia no Oceano Índico
O processo de missionação linguística na costa africana do Atlântico foi diferente do que ocorreu na África oriental e este, por sua vez, distingue-se do êxito linguístico dos missionários católicos que operaram na Ásia. Relativamente à costa atlântica, sintetize-se, de forma rápida, o conjunto de obras hoje conhecidas que datam do século XVII: A primeira obra escrita em português e numa língua africana que se editou em Lisboa, em 1624, foi a Doutrina cristã (…) traduzida na lingoa do Reyno do Congo, do jesuíta Mateus Cardoso, que traduziu um popular catecismo do padre Marcos Jorge. Em 1642 é editado, também em Lisboa, o catecismo Gentio de Angola svfficientemente instruido nos mysterios de nossa sancta fe, do padre António Couto, perito em quimbundo por ser natural de Angola. Desta edição bilingue (português / quimbundo) saiu, em 1661, uma segunda edição acrescentada com a tradução latina: Gentilis Angolae Fidei Misteriis (em latim / português / quimbundo). Já no fim do século, surge a primeira descrição gramatical do quimbundo, feita pelo jesuíta Pedro Dias na Arte da lingva de Angola, offerecida a Virgem Senhora N. do Rosario, mãy, & Senhora dos mesmos pretos (Lisboa, 1697). Esta obra foi usada no Brasil pelos padres da Companhia de Jesus que se ocupavam da conversão dos escravos trazidos de Angola.
Refira-se ainda que a famosa obra gramatical sobre o quicongo publicada em latim, em 1659, Regulae quaedam pro difficillimi Congensium idiomatis faciliori captu ad grammaticae normam redactae, do capuchinho italiano Giacinto Vetralla, foi traduzida para português em 1886 com o título Regras para mais fácil inteligência do difícil idioma do Congo.  Nas áreas de língua suaíli, macua, sena, tsonga e de outras línguas da África Oriental, o quadro é algo diferente, uma vez que não são conhecidas as obras linguísticas de que dão notícia os registos bibliográficos:
  • Da vasta Zambézia há notícia documental de um catecismo manuscrito da língua sena, composto em meados do século XVII por frei Francisco Trindade, o Catecismo, ou Confessionario necessario para uzo dos naturaes do Estado de Monomotapa, cujo paradeiro se desconhece; 
  • É igualmente desconhecido o paradeiro e o autor de uma gramática de língua moçambicana que teria sido publicada em 1680 e reimpressa já no século XX.
Certo falhanço das missões católicas, em virtude de uma tradição muçulmana já enraizada, e o facto de Moçambique ter sido, durante largos anos, não mais do que ponto de passagem da carreira da Índia, explicam este panorama algo desolador, não obstante a riqueza linguística do território». In Maria do Céu Fonseca, Universidasde de Évora, Historiografia Linguística Portuguesa. O Processo de Gramaticalização de Línguas extra-europeias, Oceano Índico, Versão portuguesa adaptada de um texto que se apresentou no Colóquio Internacional “Écriture et construction des langues dans le sud-ouest de l’Océan Indien” Faculté des Lettres et des Sciences Humaines , Université de la Réunion, Revista de Letras, II, 2005, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro..

Cortesia da U. de TM e Alto Douro/JDACT