terça-feira, 8 de julho de 2014

As Benevolentes. II Guerra Mundial. Jonathan Littell. «… o aturdimento dos sobreviventes, um silêncio estranho como uma placa sobre os tímpanos, o começo do medo prolongado, calmo? Sim, continuo calmo, aconteça o que acontecer, nada dou a ver…»

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Toccata
«(…) Declarei-lhe que não, mas que leria o livro com interesse. De facto, tendo-me cruzado por um instante com ela, talvez mais tarde o conte aos leitores, se tiver coragem ou paciência para tanto. Mas ali, não tinha qualquer sentido falar disso. O livro, de resto, era bastante mau, confuso, lamuriento, banhado de uma curiosa hipocrisia religiosa. Talvez estas notas sejam também confusas e más, mas farei o melhor que puder para ser claro; posso garantir-vos que pelo menos se hão-de manter livres de toda a contrição. Não me arrependo de nada: fiz o meu trabalho, e foi tudo; quanto às minhas histórias de família, que talvez conte também, só a mim dizem respeito; e quanto ao resto, na parte final, forcei sem dúvida os limites, mas então já não era completamente eu próprio, vacilava e além disso à minha volta era o mundo inteiro que oscilava, não fui o único a perder a cabeça, todos terão de o reconhecer. E depois, não escrevo para alimentar a minha viúva e os meus filhos, pelo meu lado, sou perfeitamente capaz de prover às suas necessidades. Não, se acabei por decidir escrever foi com efeito para passar o tempo, e também, é possível, para esclarecer um ou dois pontos obscuros, talvez para os que me lêem e para mim próprio. Penso além disso que me fará bem fazê-lo. E verdade que o meu estado de humor é bastante baço. Por causa da prisão de ventre, sem dúvida. Problema aflitivo e doloroso, de resto novo para mim; outrora, era de facto o contrário. Durante muito tempo, tive de ir à casa de banho três, quatro vezes por dia; agora, uma vez por semana seria uma felicidade.
Estou reduzido a clisteres, processo o mais desagradável possível, mas eficaz. Peço desculpa de falar de pormenores tão escabrosos: tenho bem o direito de me queixar um pouco. E depois os leitores que não o suportem fariam melhor em ficar por aqui. Não sou Hans Frank, não gosto, no que me toca, de rodeios. Quero ser preciso, na medida dos meus meios. Apesar dos meus vezos, e foram numerosos, continuei a ser dos que pensam que as únicas coisas indispensáveis à vida humana são o ar, o comer, o beber e a excreção, e a busca da verdade. O resto é facultativo. Há algum tempo, a minha mulher trouxe para casa um gato preto, pensando sem dúvida causar-me prazer. Bem entendido, não me perguntara a minha opinião. Devia suspeitar que eu teria recusado terminantemente, o facto consumado era mais seguro. E uma vez dado o passo, nada a fazer, os netos começariam a chorar, etc. Contudo este gato era bastante desagradável. Quando tentava fazer-lhe festas, para dar mostras de boa vontade, fugia para se sentar no rebordo da janela e fixava em mim os seus olhos amarelos; se procurava pegar-lhe ao colo, arranhava-me. À noite, pelo contrário, vinha deitar-se enrolado numa bola em cima do meu peito, uma massa sufocante, e no meu sono eu sonhava que me asfixiavam por baixo de um monte de pedras. Com as minhas recordações, passou-se um pouco a mesma coisa. A primeira vez que me decidi a registá-las por escrito, pedi uma licença. Foi provavelmente um erro. As coisas estavam todavia bem encaminhadas: comprara e lera uma quantidade considerável de livros sobre o assunto, a fim de refrescar a memória, delineara quadros de organização, estabelecera cronologias detalhadas, e assim por diante. Mas com aquele período de licença tinha de repente tempo e pusera-me a pensar. Além disso era Outono, uma chuva cinzenta e suja despia as árvores, afundei-me lentamente na angústia. Apercebi-me de que pensar não é coisa boa.
Poderia ter desconfiado antes, os meus colegas consideram-me um homem calmo, pausado, reflectido, calmo, com certeza; mas muitas vezes durante o dia a minha cabeça começa a rugir, surdamente como um forno crematório. Falo, discuto, tomo decisões, como toda a gente; mas ao balcão do bar, diante da minha aguardente, imagino que um homem entra com uma caçadeira e abre fogo; no cinema ou no teatro, represento-me uma granada despoletada que rola por baixo das cadeiras em fila; na praça pública, num dia de festa, vejo a deflagração de um veículo cheio de explosivos, a animação da tarde transformada em carnificina, o sangue correndo por entre as pedras da calçada, os pedaços de carne colados às paredes ou projectados através das janelas para aterrarem na sopa dominical, ouço os gritos, os gemidos das pessoas com os membros arrancados como as patas de um insecto por um rapazinho curioso, o aturdimento dos sobreviventes, um silêncio estranho como uma placa sobre os tímpanos, o começo do medo prolongado, calmo? Sim, continuo calmo, aconteça o que acontecer, nada dou a ver, permaneço tranquilo, impassível, como as fachadas mudas das cidades sinistradas, como os velhinhos nos bancos dos parques com as suas bengalas e as suas medalhas, como os rostos à flor das águas dos afogados que nunca chegam a encontrar-se. De quebrar esta calma aterradora, eu seria de facto incapaz, ainda que o quisesse. Não sou dos que fazem um escândalo por causa de um sim ou de um não, sei conter-me.
Todavia, também a mim estas coisas pesam. O pior não são forçosamente as imagens que acabo de descrever; fantasias como essas habitam-me há muito, desde a minha infância sem dúvida, e em todo o caso desde muito antes de também eu ter dado comigo em pleno talho. A guerra, neste sentido, não foi mais do que uma confirmação, e habituei-me a esses pequenos guiões, tomo-os como um comentário pertinente sobre a vaidade das coisas. Não, o que se revelou penoso, pesado, foi não me ocupar senão de pensar nisso. Considere-se o seguinte: em que pensa o cidadão, ao longo de um dia? Em muito pouca coisa, de facto. Estabelecermos uma classificação reflectida dos seus pensamentos correntes seria coisa fácil: pensamentos práticos ou mecânicos, planos que organizam os gestos e o tempo (exemplo: pôr a água do café a ferver antes de lavar os dentes, mas as fatias de pão a torrar depois, porque ficam prontas mais depressa); preocupações ligadas ao trabalho; questões financeiras; problemas domésticos; fantasias sexuais. Pouparei os detalhes. Ao jantar, contemplamos o rosto que envelhece da nossa mulher, incomparavelmente menos excitante do que a amante, mas muito melhor do que ela em todos os aspectos, que se há-de fazer, é a vida, e começamos a falar da última crise ministerial». In Jonathan Littell, As Benevolentes, 2006, Publicações Dom Quixote, 2014, Alfragide, ISBN 978-972-20-3304-6.

Cortesia PDQuixote/JDACT