quarta-feira, 25 de junho de 2014

Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650. Raquel Patriarca. «… foi de natureza linguística e prende-se com a criação da denominação cristão-novo ou converso, que passou a funcionar como classificação pejorativa…»

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O Contexto
A instalação do Tribunal do Santo Ofício
«(…) Por sua vez, Francisco Bethencourt reconhece que os motins são geralmente reveladores de pulsões profundas de carácter étnico que escapam ao controlo das elites políticas e sociais. Mas não tem dúvidas em afirmar que não existiram revoltas ou motins antijudaicos (ou melhor, anticristãos-novos) em número suficiente para se falar de um mal-estar geral em relação aos recém-convertidos. Os conflitos tiveram carácter pontual, local, e foram de escassa dimensão. Os únicos com real importância ocorreram em Lisboa em 1504 e 1506. Em resumo, a intolerância religiosa e o ódio intestino entre as duas comunidades pareciam ser menores ou pelo menos mais relativos do que Lúcio Azevedo afirma, uma vez que, no dizer de Fortunado Almeida, até as comunidades cristãs-velhas reconhecem que do baptismo imposto à força não derivava obrigação alguma. E, para Bethencourt, nem o ódio seria geral, haveria antes facções pró e anti-judaicas, nem os motins e as revoltas anti-cristãos novos seriam em número avassalador. Aliás, Bethencourt inverte a ordem dos factores. Não é a duplicidade dos recém-convertidos que está na origem das explosões de violência por parte dos cristãos-velhos, mas sim a conversão forçada que provoca, alimenta ou abre o caminho às manifestações de violência e aos motins.
Expulsão e conversão geral decididas por Manuel I só são explicáveis, no dizer de Bethencourt, se forem inseridas no contexto peninsular, para o qual aponta três acontecimentos maiores: a conquista pelos Reis Católicos, em 1392, do Reino de Granada (último reduto muçulmano da Península); a expulsão, nesse mesmo ano, pelos mesmos Reis Católicos, dos judeus dos seus territórios, com a consequente entrada de dezenas de milhares de judeus em Portugal; e as negociações entre as coroas portuguesa e castelhana com vista ao casamento do rei Manuel com a princesa D. Isabel. A acreditar nos dados de Lúcio Azevedo, em 1492, portanto antes da ordem de expulsão por Manuel I, existiriam em Portugal 195 000 judeus. Com a expulsão, teriam abandonado Portugal 5 000. Os restantes 190 000 teriam permanecido no reino e sido objecto da conversão forçada.
Não é porém a desproporção entre os que partem (5 000) e os que ficam e são convertidos à força (190 000) que leva Francisco Bethencourt a declarar que facto histórico é a conversão geral e não propriamente a expulsão. O carácter histórico atribuído à primeira decorre dos meios nela utilizados e das implicações e consequências que aquela provocou. Os meios, segundo o mesmo autor, foram violentos e perversos: sequestro de filhos, condicionamento dos transportes e redução dos residentes à condição de escravos». A conversão, tendo implicado o lançamento da suspeição sobre toda a comunidade de convertidos, teve duas consequências. A primeira foi de natureza linguística e prende-se com a criação da denominação cristão-novo ou converso (termo também empregue na primeira geração de baptizados), que passou a funcionar como classificação pejorativa de um grupo social de excluídos de carácter étnico-religioso, criando uma espécie de gueto mental. A segunda consequência foi de ordem política, com a irrupção de motins de cristãos-velhos contra os convertidos à força, de que os mais graves são os já citados motins de Lisboa em 1504 e 1506.
É verdade que em 1497 Manuel I tinha ordenado que nenhum cristão-novo fosse inquirido ou julgado por crimes contra a fé, reafirmando a total igualdade de direitos e deveres entre cristãos-novos e velhos, igualdade que, segundo Lúcio Azevedo, embora muito parcialmente posta em prática, daria lugar a novas invejas e queixas e geraria novos ódios e violências. Aquela postura, que será confirmada mais tarde, em 1507, e que, em 1512, será prorrogada por mais 16 anos, visava, entre outras coisas, impedir a saída maciça dos conversos de Portugal com os seus bens e fazendas. Mas no que toca à restante legislação, assiste-se a um acentuar da segregação de que eram alvo os judeus, transposta agora para os recém-nascidos cristãos-novos. Em 1499 instala-se a proibição de se ausentarem do país sem um salvo conduto régio. E, se antes era proibido o casamento entre judeus e cristãos, surge agora uma postura que proíbe o casamento entre cristãos-novos e cristãos-velhos.
Embora a Conversão Geral de 1497 implicasse tornar todos os cristãos, velhos e novos, iguais perante a lei e a Igreja, tal não foi de todo atingido. É ainda no já citado contexto peninsular e a exemplo do que os Reis Católicos tinham obtido do Papa que o rei Manuel I pede à Santa Sé a instalação da Inquisição (maldita) em Portugal». In Raquel Patriarca, Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650 Dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2002.

Cortesia da U. do Porto/JDACT