quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

A Ficção de João Aguiar. A alquimia de uma escrita múltipla. Ana P Arnaut. «Caio Vetílio, responsável pela corrupção de Audax, Ditalco e Minuro, assassinos do chefe lusitano, com personagens e acontecimentos fictícios, mas não inverosímeis, caso de Tongio, companheiro de Viriato e futuro sacerdote do templo de Endovélico»

jdact e cortesia de wikipedia

«… Concerne esta alegada multiplicidade não apenas a possibilidade de identificar as coordenadas estéticas por que se norteia a produção literária de João Aguiar, os caminhos da História e das Estórias. Diz outrossim respeito ao modo como, no grupo dos romances de temática histórica, o autor entretece dados históricos com elementos ficcionais; e como, nas narrativas de ficção, a sua capacidade imaginativa, aparece, por vezes, travestida por cores fantásticas, feéricas (O Homem Sem Nome); por laivos de realidade vivida ou sabida por outrem (O Canto dos Fantasmas); por características das narrativas policiais (Os Comedores de Pérolas); ou ainda ancorada no folclore popular e na realidade portuguesa (A Encomendação das Almas e Navegador Solitário). Da intromissão de elementos ficcionais na tessitura narrativa de carácter histórico, dá-nos João Aguiar conta na Advertência Prévia ao primeiro dos seus romances - A Voz dos Deuses, e igualmente válida, lato sensu, para os romances A Hora de Sertório e O Trono do Altíssimo: Boa, má ou simplesmente medíocre, A Voz dos Deuses é uma obra de ficção e não um ensaio histórico rigoroso. No entanto, estou sinceramente persuadido de que o Viriato que os leitores encontrarão nestas páginas está mais próximo do Viriato histórico e verdadeiro que a tradicional imagem do rude pastor dos Hermínios bravamente entrincheirado na sua cava, em Viseu; mesmo porque Viriato não nasceu nos Hermínios (...) a Cava é uma fortificação que nada tem a ver com o chefe lusitano. Entretanto, e parafraseando Eça de Queirós (...), foi necessário lançar sobre a nudez forte de uma verdade histórica insuficiente o manto diáfano de uma fantasia plausível ou, pelo menos, aceitável.(...)
É, pois, de acordo com este jogo entre História e ficção, cujas regras tacitamente se acordam com o leitor, que João Aguiar recua aos mais remotos tempos de Viriato, de Sertório e de Prisciliano. Destes, e da época era que se movimentam, aproveita, por um lado, alguns aspectos históricos, oficialmente tornados verdadeiros por todos os que, em diferentes espaços e tempos, foram investidos do poder de fazer crónica do passado. Por outro, o que o autor leva a cabo mais não é do que a consecução da noção Ingardiana de preenchimento de pontos de indeterminação provocados, e permitidos, pela pretensa objectividade dos relatos históricos ortodoxamente científicos, deste modo construindo verdades internas da ficção, tão didácticas e úteis como as verdades oficiais. O que John Woods designa por modalidades mistas de existência ocorre em A Voz dos Deuses, A Hora de Sertório e O Trono do Altíssimo, não apenas pela convivência no universo narrado de personagens, acontecimentos e lugares aceites como históricos, com personagens, acontecimentos e espaços ficcionais, mas também, e essencialmente, pelo facto de em cada uma dessas categorias coexistirem as duas linhas de força: a histórica e a ficcional.
Desta feita, por exemplo, coexistem em A Voz dos Deuses personagens, acontecimentos, tradições e modos de vida reais, Viriato, Sérvio Galba (governador da província Ulterior), Lúculo (governador da Citerior), Caio Vetílio, responsável pela corrupção de Audax, Ditalco e Minuro, assassinos do chefe lusitano, com personagens e acontecimentos fictícios, mas não inverosímeis, caso de Tongio, companheiro de Viriato e futuro sacerdote do templo de Endovélico; caso dos oráculos de Baikor e da Serra da Lua, cuja descrição, entre muitas outras, activa esquemas cognitivos conformes ao que o leitor julga ter sido o estado das coisas da época em causa. Cite-se, a título de ilustração, e no que diz respeito ao mundo das crenças, uma breve passagem alusiva à profecia da Serra da Lua: Relanceei um olhar alarmado à nossa volta e nesse instante ouvi uma espécie de silvo, como se fosse uma cobra, e logo a seguir a voz soou de novo, e saía da boca de Arduno, mas não era ele que falava nem era a sua voz; parecia a de uma mulher, embora o som fosse grave e a articulação dura e enérgica. - Tongio, filho de Tongétamo. Porque fazes perguntas sobre o destino se os deuses já te disseram o que podias ouvir? À vossa frente o caminho é longo. Há vitórias e derrotas, alegria e sangue, traição e glória. A águia está ferida mas este é o tempo do seu domínio. Depois do Touro virá a Corça. Porque fazes perguntas? Ε tempo de combater. Só tu verás a era da Corça. Mas os deuses querem-te, os deuses surgirão no teu caminho...
Depois do Touro virá a Corça... Depois de Viriato é A Hora de Sertório, é altura de encerrar o díptico, compondo, dez anos depois, as voltas ao mote dado pela profecia, numa narração a três vozes dos valores e das crises sociais, económicas e políticas do mundo romano do século I a.C.. A polifonia narrativa deixa de ser protagonizada pela voz dos deuses, até porque Os deuses calaram-se no céu e na terra, e passa a ser entabulada entre Euménio de Rodes, Lúcio Hirtuleio e Medamo. Narradores do trajecto pessoal e político de Quinto Sertório, estes são simultaneamente personagens, protagonistas por vezes, de pequenos quadros a partir dos quais é possível conhecer diversos aspectos da vida coetânea: cenários, usos e costumes da vida doméstica, cultural, social e política. Conhecemos e sabemos o que eles conhecem, sabem e testemunham; informações que, apesar de limitadas e parciais, validam os relatos feitos, porquanto estes se crêem tanto mais verídicos e credíveis quanto tiverem sido de facto vividos pela entidade que preside à narrativa. Além disso, aduza-se ao exposto que a mencionada limitação, de certo modo inerente aos narradores homodiegéticos, é colmatada pelo facto de cada voz ir progressivamente preenchendo vazios, momentos da narrativa deixados em aberto pela voz anterior». Ana Paula Arnaut, A Ficção de João Aguiar, A alquimia de uma escrita múltipla, Comunicação apresentada em Janeiro de 1997, Esrudos Clássicos da FLU de Coimbra, revista HVMANITAS- Vol. XLIX (1997), ISSN 2183-1718.

Cortesia da UCoimbra/JDACT