segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Príncipe. Nicolau Maquiavel. Tradução de Maria Jorge Figueiredo. «… a ‘baixeza moral’ dos que traduziram em falta de dignidade o pensamento daquele que teve “a coragem de colocar a política no plano de uma filosofia de acção, independentemente dos ditames e da autoridade de qualquer poder constituído…»

jdact e wikipedia

Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel. In Villari

Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Ciente da impossibilidade de abarcar esta labiríntica literatura, em que já florescem estudos sobre os estudos maquiavelistas, coube-me, por gentileza do editor, o pesado encargo de escrever umas linhas de apresentação de O Príncipe. Ao fazê-lo, tive de convencer-me de duas coisas. Primeira, eue Niccolò Machiavelli não é coutada privativa de historiadores ou de cientistas políticos, que são a grande multidão que dele se ocupa, pois a multiplicidade do seu ser e o polimorfismo do seu pensamento tornam-no um espelho da própria vida. Há uma frase de Giovanni Papini que resume tudo: acusar Maquiavel é acusar o próprio espelho, o mesmo é dizer, nele está a totalidade de todos nós e cada um em alguma particularidade do seu ser. Segunda, que, tendo sido dito tanto e, sobretudo, tanto contra Maquiavel, era tempo de lê-lo e ousar dizer, como se pela primeira vez: a cada um o seu Maquiavel, pois todo o homem é livre de se rever no Maquiavel que haja em si e nos outros que o cercam, sendo a vida o combate com o demónio que possui o irrequietismo de cada criatura. Devo ao acaso da leirura de um pequeno texto, de Henrique Barrilaro Ruas (cito o seu pequeno artigo sobre maquiavelismo publicado na Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, volume 18, 1999; nele, Ruas resume o seu pensamento quanto à distinção que julga dever ser feita também em relação a Karl Marx entre o teorético e o doutrinário; Maquiavel foi vítima de uma cilada que ele próprio montou; já Veríssimo Serrão anotara, ao prefaciar a obra de Martim Albuquerque, Foi voga desde o século XVI citar Nicolau Maquiavel e abusar do seu nome e mensagem para explicar situações que nada têm de maquiavelismo. As correntes ideológicas levaram à deficiente aplicação desse conceito, criando uma perigosa vizinhança com interpretações que não promanam da fonte autêntica de Maquiavel), ter-me sido possível levar os olhos um pouco mais alto do que a vulgaridade com que entendia a obra que agora apresento e ter sido capaz de compreender a necessidade ou conveniência científica de distinguir e destacar o maquiavelista [...] do maquiavélico. Foi por aí que comecei o meu estudo.
Sem isso seria mais um que faria à obra a injustiça de tomar partido. Como Maquiavel põe na boca de Calímaco, na sua notável peça de teatro La Mandragola: uma coisa gera outra e o tempo gera todas. No momento em que escrevo sinto o conforto de saber que muito se evoluiu na percepção e na avaliação deste controverso autor e haver assim espaço para outras visões pessoais que não tenham de se inserir nas trincheiras onde se tem travado o combate ideológico em torno da interpretação e aplicação de O Príncipe. O aprofundado conhecimento da integralidade da sua obra, não apenas dos escritos políticos, mas os do comediógrafo, do poeta, do simples escritor de cartas, a contextualização da mesma na época do Renascimento que a ditou, e tudo quanto tal significa de ruptura com a visão teocêntrica da vida e do homem, a ponderação da situação política que lhe foi dado viver, a ânsia da unificação de uma Itália pulverizada, traumatizada por sonhos de glória passada, enfim, um levantamento biográfico exaustivo sobre a triste misantropia e a gaia ironia da sua conturbada vida, tudo isso permite uma nova visão, mais abrangente e, sobretudo, mais enriquecedora porque mais realista. Há hoje, no fluir contínuo do pensamento e do sentir, que são a fonte da inteligibilidade de todas as coisas, ao lado de um revisionismo salvador do pior que se retirou de maquiavélico do maquiavelismo, parte do processo histórico de branqueamento dos horrores da História e da malignidade filosófica, um esforço bravo de libertar a filosofia da ideologia, o pensamento dos preconceitos, compreender sobretudo o que ditou a perenidade multissecular deste pequeno livro.
Como disse, vibrante, Jorge de Sena, num estudo vindo a público em 1963, do que se trata ao estudar Maquiavel é da condenação das hipocrisias dos moralismos e dos legalismos, simultaneamente com o amoralismo total, as grandezas e misérias do poder político, em suma, a baixeza moral dos que traduziram em falta de dignidade o pensamento daquele que teve a coragem de colocar a política no plano de uma filosofia de acção, independentemente dos ditames e da autoridade de qualquer poder constituído, religioso ou não». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução a partir do original de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.

Cortesia de EPresença/JDACT