terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O Trovador Guilhade. A sua Terra de Origem. António Costa Lopes. «Ai, dona fea, fostes-vos queixar que vos nunca louv'en meu cantar; mais ora quero fazer un cantar en que vos loarei toda via; e vedes como vos quero loar: dona fea, velha e sandia!»

jdact

«(…) Mais! Numa rubrica atributiva do primeiro destes cancioneiros encontra-se Guilhadi, ao passo que na mesma coluna, na poesia que imediatamente se segue à rubrica, está escrito Guylhade; e analogamente no segundo cancioneiro: Guilhadi na rubrica, e Guylhade no cantar por ela encabeçado. E, já agora, uma pequena amostra das grafias respeitantes ao nome de um e o mesmo lugar, em dois documentos do século XIII: Guilado no documento de 1255, e Guiladi no de 1258.

Para além do nome
Ao apresentar materiais coligidos, tive em conta a importância que todos os membros do nome completo do trovador têm ou podem ter para os capítulos que se seguem. Vejamos, então, a base que o nome completo nos oferece para o correcto desenvolvimento do nosso tema: João é prenome vulgar: assim se exprimiu Carolina Michaëlis, a propósito de um dos vários poetas medievais a quem foi dado este prenome, de origem hebraica, frequentíssimo, por exemplo, nas Inquirições de 1220 e 1258. Muito menos frequente é Garcia, acerca do qual a mesma distintíssima autora afirmou que é nome de pessoa exclusivamente peninsular. E já anteriormente, referindo-se a Guilhade, escrevera: Julgo que o poeta era filho de um Garcia. Recorde-se, a propósito, o genitivo patronímico Garcie, de origem latina (- ae), do nome completo do trovador, exarado nas Inquirições citadas no começo deste capítulo. Quanto a João Garcia, numerosos são, no século XIII, os indivíduos assim chamados, e este facto prenuncia a grande importância do apelido Guilhade, no que concerne à determinação da terra de origem do poeta e, portanto, à identificação deste João Garcia.
Com efeito, no caso de Guilhade, como em muitíssimos outros, trata-se de um apelido geográfico, isto é, indicativo do local de nascimento (ou, não raro, de habitação): cidade ou vila, povoação, mesmo pequena ou pouco importante, sítio, região... Aliás, entre os nomes de poetas medievais, não faltam exemplos de apelidos geográficos de naturalidade. Eis alguns: Bonifácio Calvo de Génova,Estêvão Fernandes de Elvas, João Peres de Aboim e Pero Garcia de Ambroa. Assim, quando o nosso trovador, autonomeando-se, empregou o apelido Guilhade, de origem germânica, assinalou aos investigadores uma inigualável pista para a indagação do lugar que lhe serviu de berço (Carolina Michaëlis).

A Pessoa. Trovador. Plano
Conformemente ao anunciado na selecção temática, não vou deter-me nalguns temas cujo desenvolvimento, embora oportuno aqui, não se afigura assaz importante para o objectivo principal que tenho em vista. Um desses temas é o do exacto número de composições do nosso poeta, cantigas de amigo, de amor, e de escárnio e maldizer, conservadas nos três cancioneiros (da Ajuda, da Biblioteca Nacional e da Vaticana). Segundo a contagem actualmente mais aceita, esse número é 54. De qualquer modo, estamos perante um dos mais fecundos agentes do trovadorismo galego-português. Outro daqueles temas, em cuja integral exposição caberiam reflexões de ordem teológico-moral, tem a ver com o alegado espírito herético, que se reflecte [...] nas canções do trovador João de Guilhade, e com aqueles dos seus versos que poderiam ser aproveitados, e já o foram, para uma antologia de obscenidades trovadorescas.

Nível poético
Guilhade terá sido trovador de seu ofício, trovador ex professo, com casa sua e jograis às suas ordens. No entanto, o que eu principalmente desejo aqui acentuar não é o seu grau na jerarquia poético-social. É, sim, aquilo que o distingue e notabiliza como poeta. Eis, a propósito, alguns dos numerosos depoimentos de autores: um dos engenhos mais notáveis do seu meio; Guilhade revela sempre grande facilidade técnica, vivacidade e, não raro, um sentimento poético admirável, principalmente para a época; um dos melhores senão o melhor trovador do século XIII; um dos mais belos génios literários do século 13, espírito chistosíssimo; uma das musas mais graciosas e travessas do século XIII.
Documentando principalmente as duas últimas apreciações agora mesmo transcritas, aponto, como exemplo, uma cantiga que tem merecido especialíssima atenção de autores que se ocupam da sátira medieval galego-portuguesa: trata-se de uma célebre cantiga, graciosa poesia, extremamente engraçada, uma paródia bem humorada à teoria do amor cortês e às suas exigências. Vem no Cancioneiro da Biblioteca Nacional e no Cancioneiro da Vaticana e é do teor
seguinte:

«Ai, dona fea, fostes-vos queixar
que vos nunca louv'en meu cantar;
mais ora quero fazer un cantar
en que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus mi pardon,
pois avedes tan gran coraçon
que vos eu loe, en esta razon
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei
en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já un bon cantar farei,
en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!»

In António da Costa Lopes, O Trovador Guilhade e a sua Terra de Origem, Câmara Municipal de Barcelos, 2003, DLegal nº 196982/03.

Cortesia da CM de Barcelos/JDACT