quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Teoria da peste. Regulação da profissão médica. Trattado unico da constituiçam pestilencial de Pernambuco. 1694. João Ferreira Rosa. Bruno Boto Leite. «Assim sendo, o tratado de Rosa, contribuía para a compreensão da doença pestilencial entre os médicos menos preparados, como os cirurgiões e barbeiros…»

Zacuto Lusitano 
Cortesia de wikipedia

«Em 1693, o frei António Santo Elias, no imprimatur do livro Trattado único da constituiçam pestilencial de Pernambuco, que seria publicado um ano depois, emitia o seguinte juízo a respeito do conteúdo da obra do médico português João Ferreira Rosa: Li o tratado da constituição pestilencial de Pernambuco que compôs João Ferreyra Rosa medico formado na Universidade de Coimbra, & assistente no mesmo estado, & não achei nele cousa alguma que encontre nossa Santa Fé, ou bons costumes; antes me parece será muito útil para as Capitanias do Brasil para onde com especialidade o compõem o autor, & ainda para alguns lugares deste Reino aonde se padece o mesmo detrimento de curarem todo o gênero de males aqueles que só aprenderam a rasgar as veias, ou a curar feridas, & chagas (in ROSA, 1694: Imprimatur). O imprimatur deixava claro a utilidade de tal obra: em primeiro lugar, o conteúdo do livro voltava-se para as Capitanias do Brasil, notadamente aquela pernambucana, auxiliando os poucos médicos e os muitos leigos que se encontravam nos trópicos ao melhor conhecimento da enfermidade que enfrentavam naquele momento. Em segundo lugar, o interesse da obra se mostrava também quanto à regulação das actividades médicas empreendidas por aqueles que, no dizer mesmo de Rosa, se intrometem a curar na falta de médicos nestas povoações. Além disso, o imprimatur também salientava a situação em vigor, tanto no Brasil quanto em Portugal, da falta de médicos peritos, que fazia com que os muitos cirurgiões, barbeiros e apotecários tomassem para si funções que aparentemente não lhes cabiam. Estes tais intrometidos, mencionados pelo censor e pelo próprio Rosa, ficavam ainda mais aparentes num parágrafo da parte do Tratado que se referia a Noticia dos motivos da primeira disputada. Dizia o autor que: Me excitou o desejo de alguma utilidade para estas Capitanias (…) (em cujas povoações se intrometem a curar na falta de médicos os cirurgiões, & barbeiros, & outras pessoas; aos quais dará alguma luz este meu trabalho, por não poderem tirar de outros volumes que não tem, nem entendem, cousa que tão facilmente acomode). A procurar o prelo; assim por ser este tratado em romance, & não haver muitos de semelhante matéria em nosso idioma.
Assim sendo, o tratado de Rosa, contribuía para a compreensão da doença pestilencial entre os médicos menos preparados, como os cirurgiões e barbeiros. Dai o facto dele ter sido escrito em língua vulgar e não em latim. Outrossim, ele também se propunha a corrigir certas compreensões equivocadas acerca da doença que no momento vigia nos trópicos. Isso fica bastante evidente logo no início do tratado, na crítica que o autor faz à interpretação que o cirurgião flamengo Antonio Brebon havia feito da doença pernambucana. Brebon era cirurgião de um dos navios portugueses que havia aportado em Pernambuco. No momento em que o dito navio deixava a referida capitania, o mal que assolava a cidade havia também se infiltrado entre os tripulantes da nau e causava problemas para os viajantes. Segundo a própria narrativa do cirurgião, que Rosa anexou ao seu tratado, os tripulantes morriam pouco a pouco sem que ninguém encontrasse a cura. Antonio Brebon então, resolveu-se, com licença do capitão do navio, praticar uma autópsia num dos corpos dos doentes que haviam morrido na nau para tentar descobrir a causa de tal mal e seus possíveis remédios. Ao abrir o corpo do cadáver morboso, Brebon relata que: … dando lhe principio pelo peito, aonde não achou lesão alguma, nem motivo que desse causa à morte. E descendo ao estomago, & região do ventre, achou o figado podre da parte interior o qual estava de diversa cor da natural, & de hum pedaço de figado que não estava corrupto; & o baço estava são, & ileso, como também o bofe; & a bexiga do fel estava quase seca, & com diferente cor da que devia ter: & achou ele testemunha que a podridão que estava no figado, estava no original das veias que vem do mesmo figado; mas ele testemunha se não persuade que as lombrigas, que achou, pudessem picar no dito figado. E fazendo mais exame no estomago, achou nas membranas dele quantidade de humor viscoso de cor negra a modo de felugem, & no estomago algumas lombrigas grandes, & pequenas da qualidade das compridas. Entretanto, o ponto importante da autópsia do cirurgião flamengo é o facto deste observar nas lombrigas achadas no corpo analisado a causa principal da doença que assolava a capitania de Pernambuco. É por isso que Antonio Brebon proporá emplastros vesicatórios na nuca, braços e pernas, para expurgar a matéria pútrida, causada, segundo ele, pelo picar das lombrigas, e bebidas vermifugas, para expurgar as lombrigas e curar o mal. Esta alternativa será largamente criticada na disputada I de Rosa, afirmando como argumento principal aquele de que as doenças complexas, como era, segundo ele, a tal peste brasileira, deveriam ser curadas com remédios complexos. E portanto a solução proposta pelo cirurgião flamengo, sendo simples demais, não poderia ser aceite. Os argumentos de Rosa baseavam-se em obras de autores reputados por grandes médicos e sábios, como Cypriano Maroja, Luís Mercado, Zacuto Lusitano e Daniel Sennert. Dai que a alternativa de Rosa apresentava-se como a mais autorizada». In Bruno Boto Leite, Instituto Universitário Europeo, Florença, Teoria da peste. Regulação da profissão médica. Trattado unico da constituiçam pestilencial de Pernambuco. 1694. João Ferreira Rosa, Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, ANPUH, São Paulo, 2011.

Cortesia de ANPUH/JDACT