sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Poesia. Alberto Caeiro. Música Árabe. «A poesia é o autêntico real absoluto. Isto é o cerne da minha filosofia. Quanto mais poético, mais verdadeiro. As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais»

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Guardador de Rebanhos
[… ]
XVI
«Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada.
E que para de onde veio volta depois
quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças, tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
e eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

XVII
No meu prato que mistura de Natureza!
As minhas irmãs as plantas,
as companheiras das fontes, as santas
a quem ninguém reza...

E cortam-se e vêm à nossa mesa
e nos hotéis os hóspedes ruidosos,
que chegam com correias tendo mantas
pedem Salada, descuidosos...

Sem pensar que exigem à Terra-Mãe
a sua frescura e os seus filhos primeiros,
as primeiras verdes palavras que ela tem,
as primeiras coisas vivas e irisantes
que Noé viu
quando as águas desceram e o cimo dos montes
verde e alagado surgiu
e no ar por onde a pomba apareceu
o arco-íris se esbateu...


XVIII
Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
e que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
e que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
e tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
e que ele me batesse e me estimasse...

Antes isso que ser o que atravessa a vida
olhando para trás de si e tendo pena...»
[…]
Poema de Alberto Caeiro, in ‘Poemas’

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