quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A História Secreta dos Cátaros. Maria Nazareth Barros. «Um deus bom não pode desejar o mal, não pode criar condições para que ele se manifeste; logo, “ao lado de um princípio eternamente Bom, existe um princípio eternamente Mau”. Dogmas e doutrinas; heresias e hereges passaram a ser perseguidos»

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«Como o mal apareceu no mundo? Um deus bom não pode desejar o mal, não pode criar condições para que ele se manifeste; logo, ao lado de um princípio eternamente Bom, existe um princípio eternamente Mau. O pensamento dualista surgiu como resposta satisfatória a este questionamento. No princípio do cristianismo, o problema do mal agitava as comunidades religiosas orientais. Entretanto, no primeiro século da nossa era, o pensamento dualista, que se manifestava através de heresias, não era condenado. Heresia significava um acto de escolha dentro de princípios filosóficos, filiados a uma escola, seita ou doutrina. Foi entre os séculos II e IV, quando a Igreja determinou os cânones do Novo Testamento, o credo apostólico e se tornou uma instituição eclesiástica, que as heresias foram marginalizadas. Dogmas e doutrinas que elas defendiam, quando comparados aos da ortodoxia, adquiriram sentido contrário ao que foi definido pela Igreja Católica em matéria de fé. Heresias e hereges passaram a ser perseguidos. Em estado latente, elas e eles se mantiveram. Por volta do ano 1000, o problema do mal voltou a atormentar o homem. O retorno das heresias tornou-se um facto europeu. O que hoje denominamos catarismo apareceu na França, no século XI, possivelmente trazido da Bulgária. O catarismo instalou-se também na Catalunha, na Itália, na Alemanha, na Inglaterra, mas foi no sul da França que tomou forma de religião, organizando-se como Igreja, como civilização original. Foi ainda no sul da França que ele contou com a conivência dos senhores feudais e exerceu influência social e política sobre a região, modificando o pensamento e os hábitos quotidianos dos sulistas. Em meio a tantas cruzadas, tantas mortes em nome de Cristo, a Cruzada Albigense, empreendida contra cristãos e não contra infiéis, foi a que obteve maior êxito e consequências importantes. Após a expedição de 1226, o papa Gregório IX instaurou o primeiro sistema de controle ideológico, feito através de denúncias, delação institucionalizada, interrogatórios e constituição de fichas de informação. A Inquisição (maldita), comandada pelos frades pregadores, deu nascimento a uma ferramenta que seria privilegiada por todos os totalitarismos futuros, por todas as ditaduras vindouras. Anos depois, o Languedoc (região onde se desenvolveu a heresia) foi anexado à coroa da França, facto de importância capital para a constituição da França actual, porque abriu para o reino as portas do Mediterrâneo.

O Conflito
Em meados do século XI, a grande preocupação da Igreja era o retorno das heresias, que contaminavam os fiéis e os afastavam da ortodoxia de Roma. A mais perniciosa era a difundida entre tecelões. Bispos e arcebispos reagiam. Faziam pregações, reuniam-se em concílios, estabeleciam cânones proibindo feudatários e povo, sob pena de excomunhão (a excomunhão decretava a morte civil de um feudatário; excomungado, o feudatário perdia serviço militar, ajuda e conselho de parentes, amigos e vassalos; a interdição paralisava a vida religiosa da cidade; impedia o povo de receber sacramentos que eram de extrema importância para o homem medieval) e interdição, de dar asilo e protecção a infiéis ou manter quaisquer relações com eles, mas as ameaças não impediram o desenvolvimento da heresia nem o convívio com hereges. Ao contrário, no início do século XII, ela ganhava seguidores por toda parte. Foi para divulgá-la que, em 1116, o monge Henrique Lausanne chegou a Mans. O bispo da cidade acolheu-o sem questionamentos. Olhos voltados para uma viagem a Roma, mal informado sobre o conteúdo da doutrina que seria exposta e defendida pelo monge, o bispo lhe deu permissão para falar ao povo. Ele partiu, e quando voltou à cidade fervilhava. De um lado, o povo, entusiasmado, escutava atentamente as ideias trazidas por Henrique; de outro, as autoridades religiosas locais escandalizavam-se com o teor de seus calorosos discursos. Proibido de pregar, ele não se acobardou e, para espanto da comunidade eclesiástica, não se calou. Os fiéis, encantados com a heresia, garantiam-lhe autoridade e amparo. O bispo conseguiu rechaçá-lo de seus domínios. Henrique refugiou-se em várias cidades, aliciou inúmeros seguidores, mas onde pregava era escorraçado. Tanto teimou, que foi intimado a se retratar em concílio. Desculpou-se, compungido. Depois, esqueceu promessas e, indiferente a ameaças, reproduziu as antigas crenças. Fuga... Expulsão... Fuga... Expulsão...
Vinte anos depois, Henrique Lausanne abancou-se em Toulouse. Granjeou inúmeros adeptos. Suas palavras resvalaram para cidades vizinhas, e muitos se converteram à heresia. Afonso Jordão, conde de Toulouse, não fora ensinado a tolher ideologias, fossem elas filosóficas, éticas ou religiosas. Estava habituado à diversidade de pensamento, advogava tolerância. Para o conde, nada mais natural que cada um professasse a religião de sua escolha. O renascimento de heresias dualistas era um facto europeu. Desde o ano 1000, após alguns séculos de latência, elas haviam sido reactivadas e, se no início do cristianismo alvoroçaram o Oriente, mil anos depois agitavam o Ocidente, trazidas dos Balcãs e do norte da Itália. Não seria ele quem as reprimiria, menos ainda os católicos da cidade. O motivo? Como perseguir amigos e parentes que cresceram juntos, foram educados nos mesmos moldes de respeito às diferentes maneiras de pensar? Os hereges viviam honradamente, como verdadeiros cristãos. Sustentavam-se através do trabalho de suas mãos, exerciam a pobreza pessoal em nítida vontade de restaurar a pureza dos ensinamentos de Cristo. A heresia preconizava um retorno ao evangelismo primitivo, aquele defendido pelo Salvador e seus apóstolos, e que a Igreja Católica esquecera, tão preocupada se encontrava com hierarquia e bens alcançados». In Maria Nazareth Alvim Barros, A História Secreta dos Cátaros, Deus reconhecerá os Seus, Editora Rocco, 2007, ISBN 978-853-252-162-0.

Cortesia de Rocco/JDACT