sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O Livro Negro. Hilary Mantel. «Ou mesmo um pai, um pai de um género ideal: como estás? Não estás a trabalhar de mais? Jantaste? O que é que sonhaste ontem? O perigo de um caminho destes é o de que um rei que se senta em mesas vulgares, numa cadeira vulgar»

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Londres e Kimbolton. Outono de 1535
«(…) Os italianos pensam que não. Dizem que a estrada entre Inglaterra e o Inferno está gasta de todos os pés que a pisam e é toda a descer. Todos os dias pondera o mistério dos seus compatriotas. Viu assassinos, sim; mas viu um soldado faminto dar um pão a uma mulher, uma mulher que não lhe é nada, e voltar-lhe as costas com um encolher de ombros. O melhor é não pôr as pessoas à prova, não as forçar à desesperação. Fazê-las prosperar; tendo o supérfluo, serão generosos. As barrigas cheias criam brandos costumes. A beliscadura da fome, monstros. Quando, alguns dias depois do seu encontro com Stephen Gardiner, a corte itinerante alcançara Winchester, tinham sido sagrados novos bispos na catedral. Os meus bispos" chamava-lhes Anne: evangelistas, reformadores, homens que viam em Anne uma oportunidade. Quem poderia ter pensado que Hugh Latimer seria bispo? Seria mais de prever que acabasse queimado, encarquilhado em Smithfield com o evangelho na boca. Mas também quem poderia ter pensado que Thomas Cromwell havia de ser alguém? Quando Wolsey caiu, podia ter-se pensado que sendo servidor de Wolsey estava arruinado. Quando a mulher e as filhas morreram podia ter-se pensado que a sua perda o mataria. Mas Henry voltou-se para ele; Henry ajuramentou-o; Henry pôs o seu tempo à disposição dele e disse, vinde, senhor Cromwell, dai-me o braço: através dos pátios e das salas de trono, a senda da sua vida está agora plana e desobstruída. Em novo teve sempre de abrir caminho com os ombros através das multidões, furando até à frente para ver o espectáculo. Mas agora abrem-se as multidões quando caminha através de Westminster ou dos recintos de qualquer dos palácios do Rei. Desde que foi jurado conselheiro, as bancas, os caixotes e os cães soltos são varridos do seu caminho. As mulheres silenciam o seu murmúrio e puxam as mangas para baixo e ajustam os anéis nos dedos, desde que foi nomeado chanceler-mor. Os detritos das cozinhas, a tralha dos escrivães e os bancos da gente baixa são atirados para os cantos e para fora da vista, agora que é o secretário-mor do Rei. E ninguém, salvo Stephen Gardiner, corrige o seu grego; não agora, que é reitor da Universidade de Cambridge.
O verão de Henry correu, em geral, muito bem: através do Berkshire, do Wiltshire e de Somerset mostrou-se ao povo nas estradas e (quando não chovia a cântaros) o povo juntou-se ao longo das estradas e aclamou-o. Porque não haviam de o fazer? É impossível ver Henry sem se ficar deslumbrado. Cada vez que o vemos impressiona-nos de novo, como se fosse a primeira vez: um homem maciço, com um pescoço de touro, com o cabelo a recuar, a cara a engordar, olhos azuis e uma boca pequena que é quase feminina. Mede quase um metro e noventa de altura e cada centímetro exprime poder. O seu porte, a sua pessoa são magnificentes; as suas fúrias metem medo, os seus votos e pragas, a suas lágrimas de lava. Mas há momentos em que o seu grande corpo se espreguiça e relaxa, o seu semblante se desanuvia; deixa-se cair a nosso lado num banco e fala connosco como se fosse nosso irmão. Como poderia falar um nosso irmão, se o tivéssemos. Ou mesmo um pai, um pai de um género ideal: como estás? Não estás a trabalhar de mais? Jantaste? O que é que sonhaste ontem? O perigo de um caminho destes é o de que um rei que se senta em mesas vulgares, numa cadeira vulgar, pode ser tomado por um homem vulgar. Mas Henry não é vulgar. Que importa se o seu cabelo está a recuar e a sua barriga a avançar? O Imperador Carlos, quando se olha ao espelho, daria uma província para ver as feições do Tudor em lugar do seu próprio semblante torto, o nariz de gancho quase a tocar o queixo. O rei François, um pau de vassoura, empenharia o seu delfim para ter uns ombros como os do rei de Inglaterra. Quaisquer qualidades que tenham lhas devolve Henry, em dobro. Se são cultos, ele é duas vezes mais culto. Se misericordiosos, ele é o próprio exemplo da misericórdia. Se galantes, ele é o padrão da cavalaria andante, do maior livro de cavalaria que se possa imaginar. Seja como for: em cervejarias de aldeia por toda a Inglaterra culpa-se o rei e dona Anne Boleyn pelo tempo: a concubina, a grande meretriz. Se o rei aceitasse de volta a sua mulher legítima, Catarina, a chuva pararia. E, na verdade, quem duvida de que bastaria para que tudo fosse diferente e melhor que a Inglaterra fosse governada pelos idiotas de aldeia e os seus amigos ébriosIn Hilary Mantel, Bring Up the Bodies, 2012, O Livro Negro, Civilização Editora, Porto, 2013, ISBN 978-972-26-3594-3.

Cortesia de Civilização/JDACT