segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A Filosofia a Golpes de Martelo. O Crepúsculo dos Ídolos. Friedrich W. Nietzsche. «O que precisa ser demonstrado para ser criado, não vale grande coisa. … a autoridade ainda é parte dos costumes aceitos, em todo o lugar em que não se ‘raciocina’, mas em que se comanda, o dialéctico é uma espécie de polichinelo»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Problema de Sócrates
«Em todos os tempos os sábios fizeram o mesmo juízo da vida: ela não vale nada... Sempre em toda parte ouvimos sair de suas bocas a mesma palavra, uma palavra replecta de dúvida, replecta de melancolia, replecta de cansaço da vida, replecta de resistência contra a vida. Mesmo Sócrates disse ao morrer. Viver, é estar há muito tempo enfermo: devo um galo a Esculápio libertador. Mesmo Sócrates tivera o bastante disso. O que isso demonstra? O que isso mostra? Outrora se teria dito (oh, e se disse, e muito alto, e nossos pessimistas em primeiro lugar!): É necessário que haja aqui algo de verdadeiro! O consensus sapientium demonstra a verdade. Falamos assim ainda hoje? Podemos? É preciso em todos os casos que haja aqui alguma coisa de enfermo, eis nossa resposta: esses sábios entre os sábios de todos os tempos, seria mister primeiramente vê-los de perto! Talvez não estivessem firmes sobre suas pernas, talvez fossem retardatários, vacilantes, decadentes? A sabedoria quem sabe aparecesse sobre a Terra como um corvo, ao qual um ligeiro odor de carniça entusiasma? ... Essa irreverência de considerar os grandes sábios como tipos de decadência nasce em mim precisamente num caso em que o preconceito letrado e iletrado se opõe com maior força: reconheci em Sócrates e em Platão sintomas de decadência, instrumentos da decomposição grega, pseudo-gregos, antigregos (A Origem da Tragédia, 1872). Esse consensos sapientium, sempre o compreendi claramente, não prova, de maneira alguma, que os sábios tivessem razão naquilo em que concordavam. Prova isto sim que eles, esses sábios entre os sábios, mantinham entre si algum acordo fisiológico, para assumirem diante da vida essa mesma atitude negativa, para serem tidos por tomá-la. julgamentos, avaliações da vida, a favor ou contra, não podem, em última instância, jamais ser verdadeiros: o único valor que apresentam é o de serem sintomas e só como sintomas merecem ser levados em consideração; em si tais julgamentos não passam de idiotices. É necessário portanto estender a mão para se poder apreender essa finesse extraordinária de que o valor da vida não pode ser apreciado. Não pode ser apreciado por um vivo, porque é parte e até objecto de litígio, e não juiz; nem pode ser apreciado por um morto, por outras razões. Tratando-se dum filósofo, ver um problema no valor da vida constitui uma objecção contra ele mesmo, constitui uma falta de discernimento e faz com que se ponha em dúvida sua sabedoria. Como? Todos esses grandes sábios não só teriam sido decadentes, mas, além disso, pode ser que nem fossem sequer sábios? De minha parte, volto ao problema de Sócrates.
Sócrates pertencia, por sua origem, ao populacho. Sabe-se, percebe-se que era feio. A fealdade, objecção em si era quase uma refutação entre os gregos. E, em suma, era grego Sócrates? A fealdade é, muitas vezes, sinal duma evolução entravada, pelo cruzamento, ou então o sinal duma evolução descendente. Os antropólogos que se dedicam à criminologia nos dizem que o tipo criminoso é feio; monstrum in fronte, monstrum in animo. E o criminoso é um decadente. Sócrates era um tipo criminoso? Pelo menos não parece contradizê-lo aquele famoso juízo fisionómico que chocou todos os amigos de Sócrates. De passagem por Atenas, um estrangeiro fisionomista disse frontalmente a Sócrates que ele era um monstro que ocultava todos os vícios e maus desejos. Sócrates respondeu simplesmente: Conheces-me, meu senhor. As licenciosidades que confessa e a anarquia dos instintos não são os únicos indícios de decadência em Sócrates; também constitui um indício a superfectação do lógico e essa malícia raquítica que o distingue. Não olvidemos tampouco as alucinações auditivas que sob o nome de demónio de Sócrates receberam uma interpretação religiosa. Tudo era nele exagerado, bufão, caricaturesco tudo, ademais, pleno de segundas intenções, de subterrâneos. Quisera adivinhar de que idiossincrasia pode nascer a equação socrática: razão = virtude = felicidade, a mais extravagante das equações e contrária, em particular, a todos os instintos dos antigos helenos.
Com Sócrates o gosto grego se altera em favor da dialéctica; na realidade, que se passou? Acima de tudo, trata-se dum gosto refinado que foi derrotado; com a dialéctica a ralé chega ao alto. Antes de Sócrates, as maneiras dialécticas eram repudiadas na boa sociedade: eram tidas como maneiras inconvenientes, eram comprometedoras. Os jovens eram advertidos em relação a elas e se desconfiava de que todos que apresentavam as suas razões por meio da dialéctica. As coisas honestas tanto quanto as pessoas honestas não tratam os seus princípios com as mãos. Aliás, é indecente servir-se dos cinco dedos. O que precisa ser demonstrado para ser criado, não vale grande coisa. Em todo o lugar que a autoridade ainda é parte dos costumes aceitos, em todo o lugar em que não se raciocina, mas em que se comanda, o dialéctico é uma espécie de polichinelo: ri-se dele, não é levado a sério. Sócrates foi o polichinelo que foi levado a sério: o que estava realmente acontecendo quando isso aconteceuIn Friedrich W. Nietzsche, O Crepúsculo dos Ídolos, A Filosofia a Golpes de Martelo, Götzen-Dämmerung, 1976, Hemus Livraria e Editora, tradução de Edson Bini, Márcio Pugliesi, Universidade de São Paulo, 2001.

Cortesia USPaulo/Hemus/JDACT