sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

A Arrábida Alexandre Herculano. «Oh, como surge majestosa e bela, com viço da criação, a natureza no solitário vale! E o leve insecto e a relva e os matos e a fragrância pura das boninas da encosta estão contando»

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«Salve, ó vale do sul, saudoso e belo!
Salve, ó pátria da paz, deserto santo,
onde não ruge a grande voz das turbas!
Solo sagrado a Deus, pudesse ao mundo
o poeta fugir, cingir-se ao ermo,
qual ao freixo robusto a frágil hera,
e a romagem do túmulo cumprindo,
só conhecer, ao despertar na morte,
essa vida sem mal, sem dor, sem termo,
que íntima voz contínuo nos promete
no trânsito chamado o viver do homem.

Suspira o vento no álamo frondoso;
as aves soltam matutino canto;
late o lebréu na encosta, e o mar sussurra
dos alcantis na base carcomida:
eis o ruído de ermo! Ao longe o negro,
insondado oceano, e o céu cerúleo
se abraçam no horizonte. Imensa imagem
da eternidade e do infinito, salve!

Oh, como surge majestosa e bela,
com viço da criação, a natureza
no solitário vale! E o leve insecto
e a relva e os matos e a fragrância pura
das boninas da encosta estão contando
mil saudades de Deus, que os há lançado,
com mão profusa, no regaço ameno
da solidão, onde se esconde o justo.

E lá campeiam no alto das montanhas
os escalvados píncaros, severos,
quais guardadores de um lugar que é santo;
atalaias que ao longe o mundo observam,
cerrando até o mar o último abrigo
da crença viva, da oração piedosa,
que se ergue a Deus de lábios inocentes.

Sobre esta cena o sol verte em torrentes
da manhã o fulgor; a brisa esvai-se
pelos rosmaninhais, e inclina os topos
do zimbro e alecrineiro, ao rés sentados
desses tronos de fragas sobrepostas,
que alpestres matas de medronhos vestem;
o rocio da noite à branca rosa
no seio derramou frescor suave,
e inda existência lhe dará um dia.
Formoso ermo do sul, outra vez, salve!

Negro, estéril rochedo, que contrastas,
na mudez tua, o plácido sussurro
das árvores do vale, que vicejam
ricas d’encantos, coa estação propícia;
suavíssimo aroma, que, manando
das variegadas flores, derramadas
na sinuosa encosta da montanha,
do altar da solidão subindo aos ores,
és digno incenso ao Criador erguido;
livres aves, filhas da espessura,
que só teceis da natureza as hinos,
o que crê, o cantor, que foi lançado,
estranho no mundo, no bulício dele,
vem saudar-vos, sentir um gozo puro,
dus homens esquecer paixões e opróbio,
e ver, sem ver-lhe a luz prestar a crimes,
o Sol, e uma só vez puro saudar-lha.

Convosco eu sou maior; mais longe a mente
dos céus se imerge livre,
e se desprende de mortais memórias
na solidão solene, onde, incessante,
em cada pedra, em cada flor se escuta
do Sempiterno a voz, e vê-se impressa
a dextra sua em multiforme quadro.

Escalvado penedo, que repousas
lá no cimo do monte, ameaçando
ruína ao roble secular da encosta,
que sonolento move a coma estiva
ante a aragem do mar, foste formoso;
já te cobriram cespedes virentes;
mas o tempo voou, e nele envolta
a formosura tua. Despedidos
das negras nuvens o chuveiro espesso
e o granizo, que o solo fustigando
tritura a tenra lanceolada relva,
durante largos séculos, no Inverno,
dos vendavais no dorso a ti desceram.
Qual amplexo brutal de ardos grosseiro,
que, maculando virginal pureza.
Do pudor varre a auréola celeste,
e deixa, em vez de um serafim m Terra,
queimada flor que devorou o raio.
[…]

In Alexandre Herculano, A Harpa do Crente, A Arrábida, 1830, Livros de Bolso Europa-América 257.

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