domingo, 10 de janeiro de 2016

A Tia Júlia. O Escrevedor. Mário Vargas Llosa. «Nada me irritava tanto como o Marito; tinha a sensação de que o diminutivo me fazia regressar aos calções. Já está no terceiro ano de Direito e trabalha como jornalista, explicou-lhe o tio Lucho…»

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«(…) Genaro-filho comprava (ou, antes, a CMQ vendia) os radioteatros a peso e por telegrama, Contou-mo ele mesmo, uma tarde, depois de se admirar quando lhe perguntei se ele, os seus irmãos ou o pai aprovavam os guiões antes da transmissão: tu eras capaz de ler setenta quilos de papel?, perguntou, olhando para mim com a condescendência benigna que lhe merecia a condição de intelectual que me conferira desde que viu um conto meu no suplemento de Domingo de El Comercio. Calcula quanto tempo levaria. Um mês, dois? Quem pode dedicar dois meses a ler uma peça radiofónica? Deixamo-lo à sorte e, até agora, felizmente, o Senhor dos Milagres protegeu-nos. Nos melhores casos, Genaro-filho averiguava, através de agencias de publicidade ou de colegas e amigos, por quantos países e com que índices de audiência tinha sido comprada a peça radiofónica que lhe ofereciam: nos piores, decidia pelos títulos ou, simplesmente, pelo aspecto. as peças radiofónicas vendiam-se a peso porque era uma fórmula menos enganadora que a do número de páginas ou de palavras, na medida em que era a única possível de verificar. Claro, dizia Javier,..., se não há tempo para as ler, ainda menos há para contar todas essas palavras. Excitava-o a ideia de uma novela com sessenta e oito quilos e trinta gramas, cujo preço, como o das vacas, da manteiga e dos ovos era determinado por uma balança.
Mas este sistema criaya problemas aos Genaros. Os textos vinham empestados de cubanismos, que, minutos antes de cada emissão, o próprio Luciano e a própria Josefina e os seus colegas traduziam para o peruano como podiam (sempre mal). Por outro lado, às vezes, no trajecto de Havana para Lima, nas barrigas dos barcos ou dos aviões, ou nas alfândegas, as resmas dactilografadas sofriam deteriorações e perdiam-se capítulos inteiros, a humidade tornava-os ilegíveis, transpapelavam-se, eram devorados pelas ratazanas do armazém da Rádio Central. Como só se dava conta disso à última hora, quando Genaro-papá distribuía os guiões, surgiam situações angustiantes. Eram resolvidas saltando o capítulo perdido e deitando-se a alma para trás das costas, ou, em casos graves, fazendo adoecer por um dia Luciano Pando ou Josefina Sánchez de modo a que nas vinte e quatro horas seguintes se pudesse remendar, ressuscitar, eliminar sem traumas excessivos os gramas ou quilos desaparecidos. Como, além disso, os preços da CMQ eram altos, foi natural Genaro-filho sentir-se feliz quando descobriu a existência e os dotes prodigiosos de Pedro Camacho.
Recordo muito bem o dia em que me falou do fenómeno radiofónico porque, nesse mesmo dia, à hora do almoço, vi a tia Júlia pela primeira vez. Era irmã da mulher do meu tio Lucho e chegara da Bolívia na noite anterior. Recém-divorciada, vinha para descansar e recuperar do seu fracasso matrimonial. Na realidade, à procura de outro marido, tinha opinado, numa reunião de família, a mais linguareira dos meus parentes, a tia Hortênsia. Eu almoçava todas as quintas-feiras em casa do tio Lucho e da tia Olga e, nesse meio-dia, encontrei a família ainda em pijama, esquecendo a má noite com mexilhão picante e cerveja fresca. Tinham ficado até ao amanhecer a cavaquear com a recém-chegada e despachado entre os três uma garrafa de uísque. Doía-lhes a cabeça, o meu tio Lucho queixava-se de que o escritório devia estar de pernas para o ar, a minha tia Olga dizia que era uma vergonha perder a noite sem ser aos sábados, e a recém-chegada, em roupão, sem sapatos e de rolos, esvaziava uma mala. Não se incomodou por eu a ver naquela figura, em que ninguém a teria considerado uma rainha de beleza.
Então tu és o filho da Dorita, disse-me, pespegando-me um beijo na cara. Já acabaste o colégio, não? Senti por ela um ódio de morte. Os meus leves choques com a família, nessa altura, deviam-se a todos se empenharem em tratar-me ainda como um miúdo e não como o que eu era: um homem feito de dezoito anos. Nada me irritava tanto como o Marito; tinha a sensação de que o diminutivo me fazia regressar aos calções. Já está no terceiro ano de Direito e trabalha como jornalista, explicou-lhe o tio Lucho, estendendo-me um copo de cerveja. A verdade, espicaçou-me a tia Júlia, é que ainda pareces um catraio, Marito. Durante o almoço, com o ar carinhoso que os adultos adoptam quando se dirigem aos idiotas e às crianças, perguntou-me se tinha namorada, se ia a festas, que desporto praticava e aconselhou-me, com uma perversidade que eu não descobria se era deliberada ou inocente, mas que de igual forma me chegou à alma, a deixar crescer o bigode, assim que pudesse, ficava bem aos morenos e isso facilitar-me-ia as coisas com as raparigas. Ele não pensa em saias nem em pequenas, explicou-lhe o tio Lucho. É um intelectual. Publicou um conto no suplemento de domingo de El Comercio. Cuidado não vá o filho da Dorita sair para o outro lado, riu-se a tia Júlia e eu senti um arrebatamento de solidariedade para com o seu ex-marido, mas sorri e alinhei. Durante o almoço dedicou-se a contar umas piadas bolivianas horríveis e a gozar comigo. Quando me despedi, parecia que queria desculpar-se das suas maldades, porque me disse, com um gesto amável, para uma noite dessas a acompanhar ao cinema, pois adorava cinema». In Mário Vargas Llosa, A Tia Júlia e o Escrevedor, 1977, 1988, tradução de Cristina Rodríguez, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-846-123-866-8.

Cortesia PQuixote/JDACT