quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Apólogos Dialogais e diálogos alegóricos. Francisco Manuel Melo. Pedro Serra. «… até um livro me dizem que saiu agora que chamam ‘Hora de Todos’, que, com galantaria digna de seu autor…»

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«(…) Para Giacinto Manuppella, um dos mais documentados estudiosos destes textos, são quatro obras-primas, repassadas de imperecível vitalidade artística. Com Os Apólogos Dialogais, Francisco Melo insere-se numa tradição de textos cujo modelo português das primeiras décadas do século XVII é a Corte na Aldeia, de Rodrigues Lobo. Por outro lado, é o próprio Francisco a estimular a aproximação comparativa com outros textos peninsulares afins.
O nome que imediatamente se nos afigura comparável é o de Francisco Quevedo, de resto amigo e correspondente de Francisco Melo. Em Os Relógios Falantes, a Fonte Velha faz referência a La hora de todos e fortuna con seso do autor espanhol: até um livro me dizem que saiu agora que chamam Hora de Todos, que, com galantaria digna de seu autor, se esmera muito em provar, com discursos e exemplos, esta verdade. Mais ainda, na Dedicatória de A Visita das Fontes, a Cristóvão Soares Abreu, Francisco recordaria uma vez mais o poeta espanhol: neste estado me acolheu esta leve ilusão que agora vos comunico. Não foi sonho, pois não é de juro e herdade que hajam de sonhar todos os Dons Franciscos. Sonhou o de Quevedo, porque tinha ou Fama ou Sorte sobre que podia dormir seguro. Mas eu, que há tantos anos que não repouso, mais depressa, de muito desvelado, escreverei, antes que sonhos, dilírios! Uma comparação, na verdade, marcada pela ironia. Francisco Melo, ao distinguir sonhos de delírios, demarca os seus textos dos de Quevedo, que constituem um horizonte intertextual feito de diferenças e de convergências. Note-se que o comentário do autor de A Visita das Fontes é bastante rico de sentido. Se o onirismo quevediano é marcado, na óptica do nosso moralista, por uma existência segura, o delírio pressupõe o auto-reconhecimento de que as tribulações existenciais imprimem uma especificidade ao seu texto. O factor biográfico, além de explícito num autor que reconhece que os textos e os livros que cita são a experiência e a memória, é uma presença implícita nos apólogos. Esta constatação não é de somenos importância. O valor moralístico nasce de um conjunto de circunstâncias vitais que funcionam como motor da escrita. Um bom exemplo é o ataque à lentidão da aplicação da justiça em Os Relógios Falantes: Francisco padeceu, como bem sabemos, os reveses de uma perseguição pessoal que o levou ao encarceramento e ao exílio. Simultaneamente, o passo é revelador do modo como Francisco lida com possíveis influências. A relação com os Sueños de Quevedo é pouco ou nada ansiosa. A configuração genológica sonho (de Quevedo) é adaptada à subjectividade do autor português. Descentrando o seu texto, não há que esquecer que Francisco Melo classificou os Apólogos, no conhecido elenco bibliográfico que antecede as Obras Morales, como obras exquisitas, o autor de O Fidalgo Aprendiz dá fortes indícios de uma relação com a categoria género, e com a auctoritas dos que o cultivam ou dele são paradigmas, algo lassa. Um bom exemplo é a Carta de Guia de Casados, texto onde convergem a epistolografia, a tratadística, ou, talvez melhor, o ensaísmo, e, porque não, a autobiografia. Voltando ao passo antes citado, ele deve ser entendido num século e num sistema literário que permeabilizam e fecundamente interpenetram os géneros literários. O rigorismo genológico é apanágio de outros programas literários, anteriores e posteriores a Francisco Melo. Estes aspectos devem ser tidos em linha de conta quando partimos para a comparação de qualquer dos Apólogos com textos afins. [...]» In Pedro Serra, Apólogos Dialogais e diálogos alegóricos, Francisco Manuel Melo, Apólogos Dialogais, Os Relógios Falantes, A Visita das Fontes, Coimbra: Angelus Novus, 1998, Fundação Calouste Gulbenkian, Halp 31, 2004.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT