terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A Voz dos Deuses. João Aguiar. «Pouco depois, eu completei três anos de idade. No dia do aniversário, o meu pai esteve mais tempo comigo do que era habitual e ofereceu em minha intenção um sacrifício a Tongoenabiago»

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O oráculo
«(…) O parto foi demorado, mas sem grandes sobressaltos; depois de me terem lavado e enfaixado, as mulheres colocaram-me no solo, para que eu recebesse as bênçãos da Mãe Terra, e abriram a porta. O meu pai entrou, seguido do meu tio e de alguns vizinhos, encarregados de testemunhar que Tongétamo, ao tomar-me nos braços para me entregar à esposa, reconhecia-me como seu filho verdadeiro e legítimo. O primeiro filho, um varão, continuador do seu nome e, talvez, o seu vingador... Porém o meu pai olhou-me com ternura mas também com tristeza, como quem olha para uma última esperança que se desfaz em fumo. Ao contrário do que esperava Camala, o marido nunca se adaptou à nova existência. Recusou-se com obstinação a secundar o cunhado nos negócios (para não parecer um ingrato ou um parasita, ofereceu-se como comandante das escoltas de protecção às caravanas; a minha mãe opôs-se porque isso o afastava dela e tudo voltou à mesma). Passeava, só e sombrio, pelas ruas de Balsa. O mar, que é para os Cónios a imagem viva e movente de um deus temível mas também generoso, enchia-o de mal-estar e terror. Vivia esperando novas da Lusitânia e passava longas tardes nas tabernas ou no mercado à procura de viajantes vindos da Calécia. Por respeito para com a mulher, prestava homenagem aos deuses de Balsa, mas não descansou enquanto não esculpiu de memória uma tosca imagem de Tongoenabiago, o deus tutelar de Brácara. Colocou-a no pátio, junto da fonte (tal como o deus se encontrava na sua cidade natal) e perante ela fazia os sacrifícios e libações. À medida que o tempo foi passando mais distante e triste o meu pai se mostrava. Quando, por insistência da mulher, deixou de escoltar as caravanas de Camalo, guardou cuidadosamente as armas, uma espada e uma adaga, como se viesse a precisar delas a qualquer instante. Um dia, correram em Balsa notícias interessantes: tribos lusitanas tinham invadido a Carpetânia e travavam uma luta vitoriosa contra o exército romano. O meu pai escutou estas notícias deliciado. Na impossibilidade de se vingar dos inimigos da sua família, dirigira o ódio contra os Romanos, que procuravam assenhorear-se de toda a Ibéria, e várias vezes entrara em conflito com o meu tio, obrigado pela sua condição de mercador a manter boas relações com toda a gente e, sobretudo, a não hostilizar as autoridades de Roma. Quando os rumores sobre a guerra se tornaram mais insistentes, Tongétamo, uma noite, foi buscar as suas armas, só para as ver, como quem contempla a mulher amada. Esperava-o um choque. A minha mãe sempre jurou nada ter feito, mas o certo era que o couro das bainhas fora embebido em água e tanto a espada como a adaga estavam irreconhecíveis, negras de ferrugem. Tongétamo passou o resto da noite a reparar os estragos, a afiar e olear as lâminas. Tornou-se ainda mais sombrio, e a minha mãe mais possessiva, absorvente e sofredora. Veio o Inverno, as rotas marítimas e terrestres fecharam-se e nada mais se ouviu sobre a guerra até à chegada da Primavera, altura em que se soube apenas que já não havia Lusitanos na Carpetânia. Pouco depois, eu completei três anos de idade. No dia do aniversário, o meu pai esteve mais tempo comigo do que era habitual e ofereceu em minha intenção um sacrifício a Tongoenabiago. À noite parecia bem disposto, quase alegre. Foi buscar a espada e colocou o punho da arma nas minhas mãos, que, de tão pequenas, não conseguiam agarrá-lo. Sorrindo, disse em voz suficientemente alta para ser ouvido pela mulher e pelo cunhado: toma-a, meu filho. Já não tenho uso para ela, mas quando cresceres será tua! A minha mãe acercou-se, intrigada com a sua atitude. Ele riu, passou-lhe o braço pela cintura e puxou-a suavemente na direcção do quarto. Na manhã seguinte os escravos encontraram-no aos pés da estátua de Tongoenabiago; matara-se com a adaga; o sangue, ao saltar da ferida, salpicara a imagem do deus. Tinha vinte anos». In João Aguiar, A Voz dos Deuses, 1984, composição de Maria Samagaio, 2005, Lisboa, Sandra Ferreira, 2007, Grafiasa, Asa Editores, Rio Tinto, ISBN 978-972-411-072-1.

Cortesia de ASAEditores/JDACT