quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

O Carteiro de Fernando Pessoa. Fernando E. Pinto. «Tudo isto é um combate implacável com o qual o poeta já estava familiarizado. Foi então que, sentado à secretária, Fernando Pessoa abriu a carta…»

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Não há melhor fragata do que um livro para nos levar a terras distantes. In E. Dickinson

«(…) É bom de ver: Alberto Reis tinha orgulho na antiga profissão. Mesmo assim, havia momentos em que o seu esforço saía espezinhado e enfraquecia perante a difícil tarefa de detectar matéria atractiva e comprometedora que o conduzisse a um trabalho de pesquisa. Podemos estar a falar de um homem obsessivo, cuja entrega e experiência nestes assuntos que perspectivavam acontecimentos objectivos e reais lhe conferiam o certificado de tomar de assalto a vida privada dos outros. No entanto, a eficácia das suas conclusões não deixava de ser surpreendente e impressionava pela precisão dos métodos que utilizava. Decerto classificava esta atitude da mesma maneira que alguém se dedica à leitura de livros policiais, hábito que enraizara com especial dedicação para não se sentir um ponteiro inutilizado no tempo. Mas agora que pensava no carteiro num entendimento algo misterioso com a senhora Ofélia, Alberto Reis sentia-se esbofeteado pelo desconforto do desconhecido. Não se podia enganar. Se existia inquietação no seu espírito, é porque havia algo de suspeito na matéria de facto. A dúvida era agora muito ténue. Ele próprio sabia que qualquer passo que desse no sentido de interferir com o imaginário alheio a sua visão dos acontecimentos informá-lo-ia sobre todas as causas, ainda que determinadas situações revelassem consequências estranhas e manifestassem distúrbios e efeitos obscuros que contribuíam para adensar o mistério. Das duas cartas que Fernando Pessoa recebeu, uma delas era aguardada com alguma ansiedade. Não se tratando de uma carta de amor, assunto íntimo e fecundo em perturbações e subtilezas da alma, a mensagem não andava muito longe da natureza das paixões, sendo que o conteúdo da missiva abordava questões de interesses culturais e missões de privacidade e absoluto sigilo. Por isso, o nome do remetente fê-lo adiar o passeio matinal pelo Chiado, com paragem na Brasileira do Rossio para o habitual contacto com alguns amigos com quem bebia, gloriosamente, uma aguardente Águia-Real; uma de1ícia estimulante que, em apenas alguns minutos de interioridade e admirável reflexão, lhe permitia lançar-se pelos trilhos do universo sob o efeito duma profunda filosofia. Assim, contentou-se com uma chávena de café feito em casa e uns vapores etílicos que tinha reservado para certas ocasiões, quando a inspiração perdia o fôlego necessário para as grandes criações e as sensações lhe reclamavam ardente desempenho reflexivo.
Fernando Pessoa estava num desses dias em que a escrita não lhe exigia completa ambição no tratamento da palavra e entregar-se de forma branda e anémica aos pensamentos só poderia trazer resultados insignificantes e de expressão deplorável. Neste momento, segurando a carta do seu amigo Francisco Fernandes Lopes, o mais importante era sentir por entre linhas as palavras do seu correspondente. Se o nosso pensamento tem as suas próprias exigências e reclama de nós implícita vontade de expressão, não é menos verdade que o pensamento dos outros, escrito que seja, se disponha a revelar semelhante objectivo na prodigiosa capacidade de nos entendermos. E, embora este amigo respeitado, médico e sábio, não se cruzasse frequentemente com ele, de facto, Francisco Fernandes Lopes apenas permaneceu na capital quando era estudante na Faculdade de Medicina de Lisboa, onde se licenciou em 1911, a carência de proximidade física nunca fora impeditiva de uma relação leal, convicta e de comum admiração criadora. De tal modo que a cumplicidade dos dois homens se consolidou no cumprimento de interesses intelectuais, a que não eram alheias as confidências políticas e a missão crítica para alcançar novos conhecimentos. No entanto, a correspondência entre os dois amigos cumpria os seus objectivos e fazia movimentar a roda do tempo. Normalmente a solidão está associada ao tempo que um homem permanece só. Na realidade, um homem solitário nem a si mesmo se entende como pessoa. O tempo nunca servirá para medir uma inquietação emocional, ou, melhor ainda, nunca nos dará a percepção exacta da solidão e suas intensidades. E solitário aquele que não se movimenta dentro de si próprio.
Transformar a pessoa que se é no sentido de acrescentar mais alguém à parte que lhe faz falta não é assim tão invulgar que o tempo não consinta. Por íntima necessidade pessoal o tempo cede à sua imaterialidade e, para humanizar a questão, a solidão cessa as suas funções demoníacas. Tudo isto é um combate implacável com o qual o poeta já estava familiarizado. Foi então que, sentado à secretária, Fernando Pessoa abriu a carta». In Fernando Esteves Pinto, O Carteiro de Fernando Pessoa, Baía dasPalavras, Edições Parsifal, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-98521-0-5.

Cortesia de Parsifal/JDACT