domingo, 10 de janeiro de 2016

A Guardiã. Melissa Marr. «A ausência do equipamento parecia indicar que já havia realizado o seu trabalho. Ou que não faria coisa alguma. … Sobre a mesa havia um prato e dois copos…»

Cortesia de wikipedia

«Fazia anos que Byron Montgomery não pisava na casa dos Barrow. Houve um tempo em que passava por lá todos os dias para encontrar a namorada de escola, Ella, e a sua meia-irmã, Rebbekah. As duas partiram cerca de dez anos antes, e pela primeira vez ele sentia-se grato por isso. A avó de Ella e Rebbekah jazia agora no chão da cozinha envolta em uma poça de sangue parcialmente coagulado. A sua cabeça, retorcida, formava um ângulo insólito, e o braço fora dilacerado. O sangue parecia vir principalmente desse ferimento. Havia um hematoma semelhante a uma marca de mão na parte superior do braço, mas era difícil distingui-lo em meio a toda quantidade de sangue. Tu, estás bem?, perguntou Chris, postando-se na frente dele e bloqueando a visão do corpo de Maylene. O delegado não era um homem de estatura excepcional, mas, como todos os McInneys, tinha um semblante que chamava atenção sob qualquer circunstância. O porte e a musculatura que no passado faziam de Chris uma figura fácil de ser vista numa boa briga de bar agora tornavam o tipo de delegado que inspirava confiança. O quê?, Byron esforçava-se para olhar apenas na direcção de Chris e evitar o corpo. Tu não vai passar mal por causa do..., Chris apontou para o chão, sangue e tudo o mais? Não, respondeu Byron, balançando a cabeça. Um agente funerário não podia ficar nauseado diante da visão, ou do cheiro, da morte. Ele tinha trabalhado oito anos em casas funerárias fora de Claysville até que cedeu ao insistente impulso de voltar para a sua cidade natal. No tempo em que esteve longe, pôde ver os resultados de mortes violentas, mortes de crianças, mortes demoradas. Lamentaram muitas delas, apesar de se tratar de estranhos, mas nunca chegou a passar mal. Agora tampouco passaria mal, porém ficava mais difícil não se envolver quando o morto era alguém conhecido. Evelyn trouxe roupas limpas para ela, comentou Chris ao recostar-se na bancada da cozinha, enquanto Byron notava que o jacto de sangue não atingira aquele canto. Já recolhes-te provas ou...? Byron parou de falar antes de terminar a frase. Não sabia o que precisava ser feito. Já perdera a conta de quantos corpos havia recolhido, mas nunca de uma cena de crime tão recente. Não era patologista nem actuava em investigações forenses; o seu trabalho só começava depois, fora do local do homicídio. Pelo menos tinha sido assim nos outros lugares. Agora que voltara, nada mais acontecia do modo como ele estava acostumado. A pequena cidade de Claysville era diferente daquelas por onde andou ambulando. Só percebeu a extensão dessa diferença quando se foi embora... Ou talvez quando retornou. Se eu já recolhi as provas do quê?, questionou Chris, fixando os olhos nele de forma tão agressiva e ameaçadora que faria muita gente acovardar-se. Mas Byron se lembrava da época em que o delegado era um dos garotos de sua turma, dos que entravam na mercearia da Shelly e compravam cerveja quando Byron ainda não tinha idade suficiente para isso. Do crime, respondeu ele e apontou para a cozinha. Uma mancha de sangue desenhara um arco no chão, em frente aos armários. Sobre a mesa havia um prato e dois copos, prova de que uma segunda pessoa estivera ali, ou que Maylene servira dois copos para si mesma. Então ela devia conhecer o seu agressor. Uma cadeira estava tombada no chão. Ela havia lutado. Um pedaço de pão e várias fatias cortadas permaneciam sobre uma tábua. Ela confiava no agressor. A faca de pão fora lavada e era o único elemento que estava no pequeno escorredor de madeira ao lado do lava-loiça. Alguém, o agressor?, tinha limpo tudo. Ao tentar entender o que via ali, Byron pensou que talvez Chris simplesmente não quisesse falar sobre as provas. Será que ele vê alguma coisa que eu não vejo? O técnico de laboratório, que Byron não conhecia, entrou na cozinha. Ele não pisou o sangue que estava no chão, mas se tivesse pisado, os sapatos já estavam protegidos. A ausência do equipamento parecia indicar que já havia realizado o seu trabalho. Ou que não faria coisa alguma. Aqui! O técnico estendeu luvas descartáveis. Imaginei que fossem precisar de ajuda para removê-la. Depois de colocar o avental e as luvas, Byron desviou o olhar na direcção de Chris. O esforço em se manter paciente desaparecera. Ele precisava saber. Chris, é a Maylene e... Apenas diz o que achas se há algo capaz de... Sei lá, ajudar a decifrar quem é o assassino ou pelo menos alguma pista. Esquece isso. Chris balançou a cabeça, afastando-se da bancada. Ao contrário do técnico, pisava com todo o cuidado. Dirigiu-se para a porta que dava para a sala, esquivando-se do corpo e atraindo o olhar de Byron. Apenas faça o seu trabalho. Pode deixar. Byron pôs-se de cócoras, começou a estender os braços e em seguida olhou para cima. É seguro tocá-la? Não quero atrapalhar se ainda for recolher... Faça o que for preciso. Chris não olhava para Maylene enquanto respondia. Não consigo investigar até que a retire daqui, e não é justo deixá-la assim. Portanto, vá em frente. Leve-a embora. Byron abriu o fecho do saco onde iria colocar o cadáver. Em seguida, desculpando-se em silêncio diante da mulher que um dia ele acreditou que faria parte da família, gentilmente transferiu o corpo com a ajuda do técnico. Ainda sem fechar o saco, ajeitou-se e tirou as luvas agora sujas de sangue. O olhar de Chris voltou-se para o corpo de Maylene. Sem fazer barulho, pegou noutro saco, agora descartável, para depositar os resíduos de risco biológico, e empurrou-o na direcção do técnico. Depois agachou-se  e fechou o fecho do saco onde estava o cadáver, tirando-o da vista. Não é certo que ela esteja assim, declarou o delegado. E não é certo contaminar o exterior do saco, completou Byron, colocando com cuidado as luvas e o avental dentro do recipiente descartável. Chris pôs-se de joelhos, fechou os olhos e sussurrou algumas palavras». In Melissa Marr, A Guardiã, tradução de Débora Fleck, Editora Rocco, Wikipédia, 2011/2012, ISBN 978-853-252-776-9.

Cortesia de ERocco/JDACT