domingo, 17 de janeiro de 2016

Roma Antiga. A vida sexual. Géraldine Puccini-Delbey. «A representação da vida sexual está estreitamente ligada ao género literário em que se inscreve e que obedece a convenções e a códigos precisos que determinam em grande parte a sua orientação, o seu tratamento…»

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«(…) Os escritos de juristas que chegaram até nós datam essencialmente dos segundo e terceiro séculos. E lançam muitas vezes luz sobre a legislação anterior, nomeadamente acerca das reformas empreendidas por Augusto. Após o final do século segundo, com a morte do jurista Ulpiano em 228 e do último imperador da dinastia dos Severos em 235, os textos jurídicos e as fontes literárias tornam-se muito pobres. Depois de Diocleciano, das perseguições e das guerras civis da primeira metade do século terceiro, o imperador Constantino reina numa sociedade muito diferente, onde os ideais cristãos se desenvolvem. As inscrições funerárias são, por vezes, úteis para esclarecer alguns aspectos dos costumes romanos. Porém, também aqui se coloca o problema da relação entre realidade e ficção, na medida em que as inscrições obedecem a códigos convencionais que põem em causa a sinceridade das palavras. A história da arte e os dados oferecidos pela arqueologia permitir-nos-ão completar o nosso estudo. Todavia, os testemunhos dados pelas obras de arte, também eles, nunca são o reflexo exacto da realidade. Todos os testemunhos que temos, literários, jurídicos ou artísticos, colocam o problema da adequação das palavras ou das imagens à realidade e exigem, consequentemente, uma interpretação prudente. A representação da vida sexual está estreitamente ligada ao género literário em que se inscreve e que obedece a convenções e a códigos precisos que determinam em grande parte a sua orientação, o seu tratamento e as suas lacunas. A expressão literária do sentimento amoroso e dos prazeres venéreos é, definitivamente, menos o resultado de uma experiência pessoal do que um fenómeno de imitação para o escritor latino, que retoma frequentemente os códigos de um género literário herdado da Grécia. Desejamos, por isso, ver nos corpos mostrados uma construção cultural e nas diferentes sexualidades evocadas tipos de discursos que mais exprimem uma ideologia do que fornecem informações, mesmo quando se trata de personagens históricas, e que antes indicam quais foram provavelmente as construções culturais das normas, dos ideais e das fantasias da elite masculina romana. É evidente que, desde a fundação lendária de Roma até ao apogeu do Império no século segundo da nossa era, os comportamentos e as mentalidades dos romanos evoluíram. No entanto, a partir da República, a sociedade romana permanece essencialmente estruturada em torno de alguns valores fundamentais. Uma das grandes forças de Roma é a de ter sido capaz de evoluir integrando princípios estrangeiros sem negar os seus próprios valores tradicionais fundamentais, o que lhe permitiu estender o seu poder à volta de toda a bacia mediterrânica e manter a sua identidade ao longo de cinco séculos ao mesmo tempo que a enriquecia.
Alguns historiadores pensam que houve mudanças significativas nas tradições romanas, particularmente aquando da passagem da República para o Império. Sem negar que este período marca uma viragem na evolução dos costumes, tentaremos, todavia, mostrar que os códigos tradicionais que regem os comportamentos sexuais em Roma se mantiveram da República ao Império sem sofrer alterações particulares. Jean-Noel Robert esquematiza, por exemplo, na sua obra Éros romain, a história da moralidade sexual romana, destacando uma progressão que vai da virtude no início da época republicana à fruição no final da República, à paixão nos primeiros séculos do Império e, enfim, à temperança na época tardia. Claro está que puderam produzir-se flutuações nas práticas; o crescimento das fortunas e o desenvolvimento do luxo na classe dominante acarretam comportamentos desaprovados pela moral pública; certos períodos são marcados por uma vontade estatal de conter tais excessos. Porém, o que não muda é a ideologia, são as normas em vigor, ou seja, o objecto principal do nosso trabalho.
Quando se torna necessário percorrer todo o Império, ir das províncias situadas nos limites do deserto africano à Caledónia (Escócia), ao Reno, ao Danúbio, é impossível levar a cabo um estudo que tenha em conta a especificidade de cada uma dessas regiões romanizadas. O nosso enquadramento geográfico será o de Roma; poderá, por vezes, estender-se a toda a Itália e, em particular, a Pompeia e redondezas, sepultadas sob as cinzas do Vesúvio a 24 de Agosto de 79 da nossa era. As individualidades que surgem nas fontes literárias pertencem aos grupos dominantes da sociedade (corte imperial, meios senatorial e equestre) e ao mundo da prostituição. Essas fontes colocam atónica em Roma, a Urbs, no Direito romano, na religião romana, nas tradições do mos maiorum. Como este trabalho procura abarcar cinco séculos de vida sexual íntima, as lacunas serão inevitáveis e, ocasionalmente, até mesmo voluntárias: um levantamento exaustivo de todos os textos relacionados com a sexualidade constituiria seguramente uma leitura fastidiosa». In Géraldine Puccini-Delbey, A vida sexual na Roma Antiga, 2007, Edições Texto e Grafia, tradução de Tiago Marques, 2010, Lisboa, ISBN 978-989-828-515-7.

Cortesia de TGrafia/JDACT