sábado, 23 de janeiro de 2016

Amor Crioulo. Abel Botelho. «Crenças, privilégios, isenções, benesses e preferências, toda essa contrafeita armadura de iniquidade e obscurantismo que sustinha ainda de pé a combalida…»

Cortesia de ibamendes

«Naquela tarde mormacenta de Fevereiro, João Silveira embarcara em Lisboa, no Almeria, com rota para a América do Sul. Considerava-se um sem-pátria, agora, na sua boa e amorável terra, sobre cujo manso e carinhoso seio não fumegavam senão escombros; terra perdida e maldita, pelo jacobinismo vermelho do 5 de Outubro abalada nos seus fundamentos e furtada criminosamente ao seu destino. Todo o ambiente tradicional em que havia sido criado, este parasitário rebento do velho regime vira-o derruir de roda de si com estrondo. Crenças, privilégios, isenções, benesses e preferências, toda essa contrafeita armadura de iniquidade e obscurantismo que sustinha ainda de pé a combalida ficção monárquica, tudo rolara desfeito, num epilepsiado arranco, numa comoção formidável, enquanto invadia ferozmente o espaço em torno um caótico fumo de confusão e de treva..., e a visão inquieta do futuro envolta num torvo mistério, como um polvoréu de ruína. Tudo lhe havia quitado descaradamente esta estupida ideia da República: os cincuenta mil reisitos que ele, mensalmente, ia ou mandava com toda a pontualidade receber, a titulo dum amanuensado hipotético na Junta do Crédito Público; as boas graças da sua apetecida noiva, a Laurita, filha dum acaudalado burguês e pelo pai abominavelmente educada, a qual agora, com o Afonso Costa no poleiro, já cantava também de papo; e até, o seu pensamento hipócrita rematava, e até as nobres, as suavíssimas cores da bandeira de seus avós, esse azul calmo e esse branco ingénuo, símbolo irrefragável da alma nacional, ora via suplantadas por um vermelho de açougue e um verde de curral, duas tonalidades irreconciliáveis, duas cores ásperas, irritantes, heréticas, como punhais, como blasfémias. Durante os primeiros meses da República, João Silveira, como tantos outros, conspirou. Aquecia-lhe a alma este vago sebastianismo solapado no íntimo de todo o bom português, acicatava-lhe o desejo a gulosa lembrança daqueles magros cobres orçamentais que, somados ao activo do seu escasso património, lhe serviam a governar sofrivelmente a vida. Assim, na sua ferina hostilidade contra o novo regime, concorriam simultâneos a alma e o estômago, uma predilecção ancestral e um instinto devorista. E foi certamente esta dualidade antinómica de inspirações que, embora visando ambas o mesmo fim, cardou a sua actuação de conspirador de todo o carácter excessivo. Porque este cauto Silveira firmou várias adesões e compromissos, fez nutrida propaganda verbal entre os rústicos, prontificou-se a recrutar gente, enviou mesmo algum dinheiro; mas sem arriscar-se nunca pessoalmente no campo da luta militante. Após a frustrada incursão de Chaves, não quis mais. Os seus 40 anos previsores e calculistas haviam grado em grado esmoitado, na gafa estrutura moral deste malogrado de Artagnan, o espírito de aventura.
Vendeu a sua reputada vinha do Pinhão, arrendou a linda quinta da Folgosa com o solar de sete capelas, o seu fidalgo berço natal e residência muito em conta quando em apuros de dinheiro; a noiva escreveu que a sua dignidade, em briga com o seu amor, o forçava àquele exilio doloroso; e aí o temos agora dobrado com indolência sobre a amura do Almeria em marcha, vergado o busto, as mãos pendentes ao abandono, evitando olhar o manso deslize da cidade donde sentia que lhe vinha um frio vento de repulsa, com as pálpebras frouxas seguindo, em baixo, o rasgar da proa pela limosa torrente caudal do rio, e os lábios vorazes vagamente encrespados na voluptuosa antevisão do Desconhecido. Primogénito dos três filhos dos Silveiras Lobo, de Mosteiro, o pequeno João fora criado com todas as mimadas preferências e toda a jactanciosa despreocupação dos antigos morgados. Todos os perniciosos desvios havia-lhe consentido o dissolvente meio familiar e este odioso prejuízo educativo, todos: desde o achincalho, o abandono burlão dos mestres, até ao abuso feudal das raparigas. Daí que, resultando uma organização inadaptável ao trabalho e um carácter voluntarioso e cego, o Silveira havia consumido o melhor da sua vida ou bambochando em saborosas sensualidades, ou luzindo em bárbaras pimponices, porém um mísero hóspede sempre da pura emoção, sempre refractário as reaçções da alquimia ideal do sentimento. Alto, forte, moreno, com uns negros olhos dominadores e uma estrutura apolínea, entretanto no seu belo rosto varonil espatinava-se a tinta de vulgaridade que imprime às fisionomias de hoje a dureza, a ausência do sentir. Pronto sempre e alerta ao galanteio, a volúpia, a brutalidade, ao prazer, nunca até aquele momento se sentira capaz duma paixão que o arrancasse a si mesmo, que montasse o seu egoísmo e as suas ambições tacanhas, que lhe pusesse asas na vontade e lhe espiritualizasse o desejo. Nutria um tédio altaneiro pelos aspectos triviais da vida, este tédio que e o triste apanágio das almas sem voo, dos corações vazios. Jamais consentira intimidades e votava, pelo geral, aos homens um desdém cortês, as coisas uma indiferença amável». In Abel Botelho, Amor Crioulo, 1913, Projecto Livro Livre, livro 399, Poeteiro Editor Digital, Iba Mendes, 2014.

Cortesia de PLLivre/IMendes/JDACT