sábado, 16 de janeiro de 2016

Poesia em Sábado. Vida Breve. Mia Couto. «Um grande cais cheio de pouca gente, duma grande cidade meia-desperta, duma enorme cidade comercial, crescida…»

Cortesia de wikipedia

(Escre)ver-me
«nunca escrevi
sou
apenas um tradutor de silêncios

a vida
tatuou-me nos olhos
janelas
em que me transcrevo e apago

sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar»
Fevereiro 1985


Protesto contra a lentidão das fontes
«Vazaram-se as luas da savana
ossadas pálidas emigraram
dos corpos para o chão
ajoelharam-se os bois
exaustos de carregarem o sol

Escureceram as horas
nomeadas pela fome
extinguiu-se o sangue da terra
esvaiu-se o leite
num coágulo de saudade

Restam troncos
sustendo gemidos
mães oblíquas sonhando migalhas
mendigando crenças
para salvar os filhos já quase terrestres

Quem protege estes meninos
feitos da chuva que não veio?
Que casa lhes havemos de dar?

Amanhã
quando se entornarem os cântaros do céu
as aves voltarão a roçar a lua
e as cigarras de novo espalharão seu canto

Mas dos meninos
talhados a golpes de poeira
quantos restarão
para saudar o amanhecer dos frutos?
Junho 1984
Poemas de Mia Couto, in ‘Raiz de Orvalho
Depósito Legal B-4777-2009

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