sábado, 30 de janeiro de 2016

Anakagawea. Rochett Tavares. «Meu lar? Como ainda reivindico tal propriedade, se hoje me tornei um pária, um monstro inominável cuja alma é tão negra quanto o breu a cobrir o vale nesta noite?»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Sinto odor de carne apodrecida invadir as minhas narinas, à medida que me aproximo do único mundo que conheci desde o momento no qual o Senhor me dera o dom do raciocínio. Quem sou eu para tocar em seu santo nome? Maculei a minha alma nesta noite maldita! Cruzei a ténue linha que separa o homem da besta, o pecador do virtuoso. Minha luxúria transcendeu qualquer mensura, igualando-me à mais nefasta cria do abismo! O trilho que conduz à vila de Woosonat está coberta por galhos de aspecto semelhante aos braços de um cadáver no seu descanso eterno. Como desejo cerrar meus olhos e ingressar no sono sem sonhos dos que aguardam o julgamento! Como desejo livrar-me da dor e do horror, do remorso e da vergonha pairando como uma gigantesca sombra sobre meu espírito! Um luar pálido cintila delicados fios de prata na margem do Blackstone enquanto o meu corpo geme a cada passo rumo ao lar. Braços, tórax, pernas e ombros, tudo está recoberto por seiva humana. Sim... A tinta escarlate a pulsar nas corredeiras sob a pele; usada pelo messias para simbolizar o holocausto, a expiação de nossos pecados. Se o filho do homem imaginasse o que aconteceria esta noite, jamais se deixaria pregar na cruz por seus algozes romanos... Tudo em nome do mesmo amor proclamado por ele em seus sermões. Tudo em nome do mesmo amor pelo qual seu pai imolara o único e verdadeiro filho. Estou nu. As minhas vergonhas são acariciadas pelo vento do Outono, balançando no vazio a rodear-me como frutas amadurecidas. Por que motivo me deixei levar pelo clamor da carne, cedendo à tentação? Por qual motivo não me entreguei à contricção, orando por ela como todo homem de fé deveria fazer? Avanço mais um pouco e posso distinguir os cumes das chaminés no meio emaranhado de copas fixadas desde o topo ao sopé da colina onde os fundadores decidiram criar um mundo livre dos abusos e depravação reinantes na distante Europa. Europa... A terra mãe dos meus ancestrais nada mais é do que um nome sem significado nas entranhas de Rhode Island. Sou um cidadão americano, tão americano quanto ela e o seu povo. Não! Mesmo tendo nascido neste lugar inóspito, mal tocado pela mão do homem branco, não posso requerer um título cujo direito é apenas dos que já estavam aqui antes de Colombo! Sinto pedaços de carne desprenderem-se das solas feridas. Meus pés gritam em sofrimento, implorando por um alívio que não poderei conceder-lhes até chegar ao meu lar. Meu lar? Como ainda reivindico tal propriedade, se hoje me tornei um pária, um monstro inominável cuja alma é tão negra quanto o breu a cobrir o vale nesta noite? Espinhos mordem a pele desprotegida de braços e abdómen, rasgando o seu caminho até aos músculos extenuados. Não sei o que me move e sinto, contudo, não ser capaz de parar minha marcha, até atingir o objectivo: um sussurro esgueirando-se no fundo de minha mente. Mais um pouco e chegaria à residência dos Fierce, onde poderia reunir algum dinheiro, roupas e partir sem rumo, deixando para trás o lugar onde perdi a alma em troca de prazeres reservados apenas ao sagrado matrimónio. A quem estou enganando, afinal? Tudo o que desejo é cair por terra diante do nosso padre e implorar-lhe o perdão pelo meu crime. Se Cristo perdoou as meretrizes, por que não seria eu merecedor de sua dádiva? Jamais toquei numa mulher com lascívia até conhecer... Conhecer... Seu nome causa-me vergonha. A sua lembrança revira-me o íntimo. Mesmo após tudo o que aconteceu, como ainda posso sentir-me atraído por... Por aquilo? Tende piedade de mim, senhor, pois pequei contra o senhor, contra a minha fé e contra mim mesmo! A punição pela minha luxúria não pode ser outra além do abraço eterno das chamas infernais! Arderei por toda eternidade, supliciado por demónios ávidos em violar as almas à mercê dos seus mais abjectos caprichos!» In Rochett Tavares, Anakagawea, 1975, Bahia, Luís Eduardo Magalhães, Grupo Artístico Editora, 2014, CDD 869-938-699-3.

Cortesia de GAEditora/JDACT