quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

A Conspiração do rei James. Phillip Depoy. «Deus do céu! Um corpo ensanguentado estendia-se no frio piso de pedra perto da escrivaninha de um dos académicos»

jdact e wikipedia

Roma. 1605
«(…) O papa ofereceu a mão com um suspiro, e o outro beijou o anel. O cardeal fez uma mesura, voltou-se e encaminhou-se depressa à porta secreta. Só uma vez olhou por uma fenda nas pedras, frias e cinzentas, passando a mão, para ter certeza de que não havia ninguém no corredor do lado de fora. Como não viu coisa alguma, empurrou a porta e deixou atrás o seu papa. Uma vez no corredor, percebeu que suas mãos não paravam de tremer e que o suor não parava de escorrer-lhe da linha dos cabelos. Esforçou-se para sufocar o pior temor: que o papa houvesse enlouquecido. Reduziu o passo apenas um pouco, tentando decidir o que o perturbava mais: a conversa que acabara de ter com Sua Santidade ou a que teria com o mais frio homem da Itália.

Cambridge. Inglaterra
Sem aviso, o diácono Francis Marbury teve o sono despedaçado. Socorro! Assassinato! Alguém! Abriu os olhos. O luar, suave e claro, banhava o quarto. A noite de Abril era fria, o ar ainda retinha uma forte lembrança do Inverno, embora essa estação já tivesse ido embora. Alguém! Socorro! Marbury voou de debaixo das cobertas, envolveu-se numa capa acolchoada preta e enfiou a cabeça pela janela do minúsculo quarto. Uma a uma, todas as outras em volta passaram de negras a brancas; vozes puseram-se a gritar. Ele cambaleou devolta, parou para calçar as botas e mergulhou no corredor do diaconato, aumentando o passo enquanto voava escada abaixo. Na noite do lado de fora, vários outros juntaram-se a ele; rostos borrados na escuridão. A paz do pátio comum, cercada por silenciosos prédios de pedra, fora destruída por homens que corriam em direcção aos gritos. Quando se aproximou do Grande Salão, de cujo lado vieram os gritos, Marbury viu que um dos académicos, Edward Lively, barrava a porta. Vestia fino brocado, um suave tom de prata que reflectia a luz do luar na direcção dele. Usava um chapéu de arminho, novo e ousado, e luvas de couro negro com abotoaduras que exibiam a letra L. Tinha a barba tão limpa e macia quanto a cama de um rico. Outros cercaram a entrada quando o pastor parou diante dele.
Que foi que houve?, perguntou, sem fôlego, e tocou o ombro do outro. Um cadáver, conseguiu responder Lively, engolindo em seco. Afastou-se e abriu a porta do salão, com uma voz que ecoou nas paredes sem vida. O restante dos homens passou por ele aos montes, velas acesas; faziam furiosas perguntas. O salão era uma caverna, fria e silenciosa. Uma obsidiana mais negra que a noite obscurecia os cantos mais distantes. O ar parecia tomado por lascas de gelo, que picavam os dedos e açoitavam as faces. Os homens avançaram devagar. Alguma coisa terrível jazia numa pilha logo em frente. Após um instante, um dos homens gritou. Outro começou a tossir, ou a vomitar. Marbury respirava forte. Deus do céu! Um corpo ensanguentado estendia-se no frio piso de pedra perto da escrivaninha de um dos académicos.
O pastor lutou para controlar a respiração, repetindo na mente sem parar que o que via na verdade não estava ali; era um fantasma. Mas a mente sabia que não. Ao que parecia, Lively deixara cair a vela, que fora parar próximo à perna de uma escrivaninha e continuava a arder, de lado, e a lançar uma luz trémula sobre o morto desabado em baixo da mesa. Um cadáver, apenas, não teria aterrorizado tanto os estudiosos. Por causa da peste, cada um vira no seu tempo muitos corpos sem vida. Era o rosto do cadáver que provocava o impulso de gritar; a visão revirava o estômago. Fora cortado talvez uma centena de vezes: lacerações longas esburacavam a carne até não restar traço algum; apenas músculos nus, pontas de ossos e sangue seco da cor de ameixas podres. Com aquela face desfigurada, não havia como saber a identidade do homem. Vejam!, gritou Robert Spaulding, espantado. Segundo no comando dos tradutores, ele ocupava uma posição mais de secretário que de qualquer outra coisa. Diante de tal cena, ele parecia mais fascinado do que revoltado. O seu casaco simples, cor de folha morta, parecia ter sido lavado com tanto vigor que talvez até tivesse sentido dor. Apontou a complicada cruz de espinheira no pescoço do morto». In Phillip Depoy, A Conspiração do rei James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.

Cortesia de Prumo/JDACT