sábado, 27 de janeiro de 2018

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «… atardando-me na perda, na falta, na falha; cheiro a ferrugem dos sangues ou a ferro agoirento: das espadas, das armaduras, das viseiras…»

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1754-1758
«(…) Enquanto Brites está de conversa com as irmãs cozinheiras, Leonor passeia devagar os olhos gulosos ao longo de duas grandes mesas de mármore, uma repleta de sopeiras fumegantes, de terrinas de caldo de galinha gorda, de travessas de arroz de coelho, e a outra só com sobremesas: covilhetes de marmelada, pratinhos de rebuçados de ovos e caramelos, pratos de louça da Índia com cogulos de pão-de-ló e bolo podre, taças de vidro coalhado com leite de sericaia e ovos moles. De súbito, porém, algo indefinível muda à sua roda, e ela detecta um novo perfume a libertá-la da roda de doces ainda quentes, do cheiro macerado da carne em vinha-d’alhos, do acre das especiarias, da aspereza da erva cidreira. Essência de chuva que a deixa perplexa e a leva a seguir-lhe o rasto, que se tinge primeiro de romã e em seguida de lápis-lazúli. Poalha dourada a levantar-se, esparsa por uma aragem equívoca, espécie de mansa corrente de ar que a faz virar-se e olhar para trás receosa. Quando volto a cabeça vejo-a: nimbada de luz a fitar-me imóvel à entrada da porta.
Vestido de linho de um tom de pérola recolhido, descendo liso e solto ao longo do corpo magro de ossos miúdos; saia cingindo a cintura estreita, mangas compridas que mal deixam a descoberto os pulsos frágeis. Tem olhos amarelos acusando a linhagem de bruxas e feiticeiras, a pele de uma palidez exaltada e os cabelos do recôndito tom do mel acrisolado. Olhamo-nos devagarinho, como quem cuida do que vai encontrar e, porque ela hesita, acabo por ser eu a dar o primeiro passo. Aproveitando a distracção das freiras que trocam segredos de receitas com a dama de companhia de minha Mãe, deslizo sem ruído pelas lajes da entrada e na tijoleira da copa, perseguindo-a no seu recuo, cada vez mais fora do meu alcance, a tentar apagar-se na sombra de pedra do corredor sombrio. No entanto, a claridade loura que emana sublinha-lhe o vulto esquivo e tímido, que agora se detém, parado e hirto, limitando-se a ver-me aproximar com receio, até ao momento em que também se entrega e corresponde, ambas de diferente altura, mãos a tactear o ar como se fôssemos cegas, mas apenas encandeadas pela aura uma da outra; e quando os nossos dedos se encontram o luzimento é tanto que nos obriga a franzir as pálpebras transparentes. Como te chamas?, consigo perguntar-lhe, temendo vê-la desvanecer na própria ausência. Lilias Fraser, responde-me muito baixo, numa voz rouca e entumescida, como se as palavras teimassem em não querer sair-lhe dos lábios descoloridos. Detive-me encostada ao umbral da porta da grande cozinha do convento, onde ia buscar o chá de tília pedido por soror Theresa. Andar descuidado o meu, de quem não espera encontrar surpresa em coisa alguma, esgueirando-me das adivinhações e das alucinações por entre os interstícios do medo, tentando reparar apenas naquilo em que seria óbvio reparar. Mas, sem aviso, o improvável surgiu à minha frente na figura de uma menina muito composta, capinha de fazenda cinzenta, mãos escondidas num regalo de arminho, cabelos claros e ondeados debaixo do chapéu enfeitado com penas marfinadas de peito de pomba. Estupefacta, parei sem perceber se ela seria real ou imaginária, de tal maneira me parecia improvável estar ali, à mistura com as irmãs cozinheiras, com as noviças estouvadas, com as velhas enregeladas agachadas ao pé do fogo. Fascinada, vi-a imóvel junto à mesa dos doces, olhar vidrado de gulodice, a língua rosada e húmida a passear ao de leve ao longo do indeciso contorno dos lábios, enquanto ia tomando o gosto aos odores da encharcada, dos melindes, dos fios de ovos soltos, cheiros que se evolavam, encorpados de açúcar em ponto, das taças de vidro delicado, das tigelinhas de compota.
Senti-me estremecer diante de tamanha volúpia incontida, de tanto vacilo à beira do capricho que estranhei no desconhecimento do suspiro contido, da determinação em aceitar o desejo, do êxtase da entrega; enquanto eu me distancio das pessoas, temendo adivinhar-lhes a morte, a sombra, o seu decomposto interior, a vida de que vejo os limites, o fundo, o lodo, as rachas, na voraz roedura do corpo. Dom maldito que arrasto em silêncio, conhecendo o peso da sua asfixia, da sua secura obsessiva que me afasta dos outros, atardando-me na perda, na falta, na falha; cheiro a ferrugem dos sangues ou a ferro agoirento: das espadas, das armaduras, das viseiras, a recordarem a crueldade de um campo de batalha». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT