sábado, 20 de janeiro de 2018

O Retrato do Rei. Ana Miranda. «Manda-o embora. Oh, o homem veio de tão longe, suplicou Aurora. Mariana hesitou. Fala-me mais sobre ele, disse à criada»

Cortesia de wikipedia

O contrato da carne
«(…) A criada de quarto, Aurora, entrou na sala e anunciou a chegada de um visitante. Quereis que eu fique?, perguntou Tenório. Não, disse Mariana. O amanuense retirou-se para a sala onde trabalhava. O homem falou que tem um assunto muito importante a tratar, disse Aurora. Mariana sentiu um leve tremor. Como é ele? Descreve-o para mim. A senhora não há de acreditar. As roupas mais esquisitas que jamais vi: um chapelão de aba caída, camisa aberta no peito, cinto de couro, pistola, faca, botas grosseiras. É negro? Mestiço?, perguntou Mariana. Branco! Tem o peito e os braços peludos. Deve ser mascate. Garantiu que nada tem para vender, disse Aurora. De onde veio ele? Das Minas do Sertão, disse a criada. Talvez traga notícias de vosso pai, ou um presente mandado pelo barão. Se veio das Minas pode ser algo de ouro. Um anel, brincos, braceletes, disse Aurora, sonhando acordada. Quando um desconhecido nos traz um regalo, em seguida faz um pedido. Mariana recebera alguns estranhos em sua casa, quase todos trapaceiros, espiões, curandeiros, caçadores de heranças ou prerrogativas, advogados procurando clientes parvos ou coisas piores. Manda-o embora. Oh, o homem veio de tão longe, suplicou Aurora. Mariana hesitou. Fala-me mais sobre ele, disse à criada. Parece-me que tem todos os dentes na boca. Onde haveria de tê-los? Nas orelhas? Fale-o esperar um pouco, disse Mariana. E depois manda-o entrar. Decidiu receber o visitante ali mesmo, recostada na poltrona. Estava farta da preguiça, cansada da modorra do Rio de Janeiro. A solidão que escolhera agora a enfadava. Havia anos deixara de frequentar as assembleias familiares nos sobrados dos nobres, onde as maiores diversões eram a hipocrisia e a maledicência.
Valentim entrou. Tinha vinte anos, era magro e usava roupas sujas de poeira. Trazia o chapéu na mão. Observou, de maneira discreta, a dama de pele alva, cabelos negros, roupa escura; uma figura sepulcral. As mulheres nas Minas tinham a pele queimada pelo sol, mas aquela ali era marcada pela noite. Dona Mariana de Lancastre? Sim, sou eu. O que quereis? Vosso pai pede que vossenhora vá para as Minas Gerais encontrar-se com ele. Aurora tinha razão, pensou Mariana. Um mensageiro de dom Afonso. Porque pedir a uma dama que se mova para tão longe assim? Acaso meu pai está prisioneiro, ou inválido? Não poderia ele vir ao meu encontro? Compreendo os vossos sentimentos. Mas o barão tem um bom motivo para fazer-vos tal pedido. Sentai-vos, Mariana indicou a cadeira. Estou bem em pé. Agradeço. Meu pai passa por alguma dificuldade? Não, absolutamente, não se debate em tribulações. Porque ele mandou vós? Sois empregado dele? Somos amigos e ele confia em mim. Conheço bem os caminhos. Comigo estareis segura. Porque motivo, afinal, o barão de Lancastre deseja ver-me? Valentim fez uma pequena pausa. Vosso pai está à morte. Mariana sentiu-se empalidecer, como se o sangue tivesse parado de circular em seu corpo, embora o coração batesse descompassadamente. As suas mãos ficaram frias. Valentim aguardou uns instantes, antes de prosseguir na sua mensagem. Perdoai-me falar nisso neste momento, mas foi um desejo expresso de vosso pai: ele pretende deixar-vos uma herança. Possui uma boa casa, vinte e quatro escravos, datas demarcadas. Juntou cinco arrobas de ouro. Isso é muito, embora haja homens que possuem cinquenta arrobas.
Era intrigante a maneira correcta como Valentim se expressava. O domínio das palavras costumava ser circunscrito ao clero e a raros nobres e advogados. Em que arraial está o meu pai? No de Ouro Preto, na região das Minas Gerais. Podemos ir pelo mar até ao lugar de Parati, e depois... Podemos? Mas eu não disse que irei. Quero um dia para pensar. Como quiserdes. Valentim retirou-se. Mariana ouviu o canto de Aurora na cozinha; embora tudo permanecesse aparentemente igual, o dia não voltara à sua normalidade». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.

Cortesia de ESchwarcs/CdasLetras/JDACT