quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

A Conspiração do rei James. Phillip Depoy. «Talvez as minhas palavras pareçam frias, mas creio que expressem o interesse maior da nossa erudição e de nosso rei»

jdact e wikipedia

Cambridge. Inglaterra
«(…) Creio que aquela seja a cruz de Harrison, sussurrou Marbury. E aquele, com a máxima certeza, é o colete de Harrison, continuou Spaulding, frio como uma pedra. Não havia dúvida sobre quem era o morto. O ministro protestante apoiou-se na escrivaninha e concentrou-se na respiração. Observou em silêncio os outros concordarem entre si sobre os detalhes das conclusões que haviam tirado. Como foi, começou Marbury a perguntar devagar a Lively, que o senhor encontrou este horror a esta hora da noite? Meu entusiasmo atraiu-me até aqui, apressou-se a responder o outro. Estava ávido para trabalhar nas minhas novas páginas... Elas exercem tamanha atracção sobre mim que o senhor nem pode imaginar. É, mas o que não preciso imaginar, declarou o pastor com cuidado, é a raiva que Harrison teria demonstrado se soubesse que o senhor andava olhando o trabalho. O sujeito era dado a ataques de fúria. Todos sabemos disso. Talvez estivesse aqui, os senhores tivessem discutido, ele o tenha atacado... Lively foi interrompido antes de começar a responder. Precisamos avisar o vigia nocturno imediatamente, exigiu Spaulding. O senhor é um homem de letras, Spaulding, e não saberia como proceder em assuntos deste tipo, respondeu Marbury, mal escondendo o tom de zombaria, e nossos policiais aqui em Cambridge são todos, até ao último, bastante inúteis. Permita-me cuidar deste caso de outro jeito.
Revoltante, guinchou o outro. Não devemos deixar que isso aconteça... Eu já pensei num método para investigar este horror, respondeu o pastor num tom tranquilizante, quase hipnótico. Mas... Marbury voltou-se logo para o grupo e ergueu a mão. Com o seu perdão, cavalheiros, eu sugiro que avaliemos tudo por um instante antes de falarmos mais. Primeiramente, o nosso dever cristão obriga-nos a oferecer, cada um de nós, uma prece em silêncio por nosso colega Harrison. Viu cada rosto vivo registar o seu próprio tipo de religiosidade instantânea. Olhos fecharam-se, bocas mexeram-se; vozes sussurraram. Ele usou o momento de silêncio para dar outra olhada no cadáver e tentou examiná-lo com mais atenção. O sangue no corpo não secara, mas não escorria. Quase não havia mancha no chão, na escrivaninha ou na cadeira próxima do morto. O colete mostrava vários lugares rasgados, dois encharcados de sangue, mas era um sangue viscoso, não estava vazando, nem seco. Poderia Harrison haver sido morto noutro lugar e depois trazido para o salão?
Após um momento, obrigou-se a tornar a olhar a devastação que era o rosto. Rezou, então, para que o amigo já estivesse morto antes de ser mutilado. Mas, ao terminar a prece, notou mais alguma coisa. Agora, então, quebrou o silêncio no tom controlado de um homem de negócios, peço aos senhores que não falem do incidente. Não o discutamos com ninguém fora destas paredes enquanto não soubermos o que aconteceu. O trabalho dos senhores é demasiado sagrado, demasiado vital, para ser destruído por este acontecimento. Talvez as minhas palavras pareçam frias, mas creio que expressem o interesse maior da nossa erudição e de nosso rei. Afinal, este salão é um lugar de aprendizado ou um matadouro? O académico mais velho do grupo pigarreou com barulho. Era o dr. Lawrence Chaderton, um estudioso de hebraico, em termos amistosos, com muitos dos notáveis rabinos da Inglaterra. Irradiava a profunda calma de um homem com total confiança sobre o lugar que ocupava neste mundo, e no próximo. Tinha o casaco simples e negro, abotoado, quase chegando ao pescoço. Cabeça descoberta, os cabelos brancos emitiam raios e faíscas. O homem que fez isso a Harrison não é, na minha definição, um ser humano. O velho estreitou os olhos. Devemos seguir em frente com incrível delicadeza. Sugere nosso colega mais velho, interveio Spaulding, com um sorriso de zombaria e formando as palavras com a boca, que isso pode ser obra do demónio?» In Phillip Depoy, A Conspiração do rei James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.

Cortesia de Prumo/JDACT