terça-feira, 9 de janeiro de 2018

O Segredo de Compostela. Alberto S. Santos. «Como se já não me bastassem os enjoos, o aumento do peso e as dores, agora estes malditos pesadelos! Ai de mim!»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O quarto de Priscila, no primeiro andar, não se ressentia do frio invernal, tocado pela intempérie, nos confins da Galécia. Valéria, sabes que trago a protecção da minha querida Ísis. A velha sorria, aproveitando o ambiente aquecido pelo hipocausto, que se situava sob o piso térreo. O ar quente que circulava sob os pavimentos do edifício e pelo interior das paredes transformava o quarto num local aprazível e acolhedor. Sim, Juno e Ísis haverão de fazer uma bela parelha para vos proteger, sossegou-a, bem-disposta. Mas precisa de manter-se calma para que tudo corra na perfeição! No entanto, não era a serenidade que habitava a auréola da parturiente. A família vivia ainda o luto da sua irmã mais velha, que morrera precisamente durante os trabalhos de parto, no Verão anterior. Salvara-se, in extremis, o fruto que levava dentro de si, depois de uma delicada intervenção da parteira que a assistiu. Chamaram-lhe Felicíssimo, pela fortuna de ter sobrevivido aos augúrios que, à pressa, se extraíram da leitura das entranhas de animais e dos voos de aves. A partir de então, muitas foram as noites de Priscila transformadas em vigílias, e outras tantas aquelas em que acordava subitamente, afogada no próprio suor, por entre diabólicos pesadelos, que a ameaçavam de dor ou de um precoce encontro com Caronte.
Como se já não me bastassem os enjoos, o aumento do peso e as dores, agora estes malditos pesadelos! Ai de mim!, murmurava a senhora de Villa Aseconia pelos cantos da casa. Era o seu primeiro parto, e apresentava-se-lhe como o último passo do sempre incerto percurso da gravidez. Porém, o que a velha Valéria mais temia, apesar do olho sagaz para todos os pormenores, era a sorte do feto. Este não se gerara num colo de facilidades, pois a mãe era uma jovem de quadris estreitos. Mas esse era assunto que guardava para si, e que haveria de levar em conta no momento da luz. Valéria dormiu ao seu lado. Quando a madrugada trouxe a alva, Priscila vislumbrara a hora de todas as verdades. Acometeu-se de tremores e temeu um ataque de pânico. Estava deitada no quarto à chegada das primeiras contrações. A parteira chamou as servas para a ajudarem. Por Júpiter! Temos de a segurar e acalmar! Agarra a senhora por esse lado! Ordenou a uma jovem criada, enquanto indicava a outra que lhe prendesse as pernas.
Ai que eu morro! Ai que eu morro! Calma, senhora! Vai correr tudo bem! A parteira procurou sossegar a patroa, mas os medos com a sorte da paridura não lhe fugiam. Chamou ao lado uma das escravas que a ajudava. Temos de tomar providências! A hora aproxima-se e ela não pode continuar neste estado! Vai buscar água e mistura-lhe aquelas ervas que trouxe do bosque, rápido! Os esforços para a apaziguarem pouco efeito surtiam. Priscila era uma mulher agoniada. Valéria suspeitava, porém, que o sofrimento era mais de ordem mental que físico. Tu, amarra este amuleto no topo da cadeira!, ordenou à mais corpulenta das servas, quando, num gesto rápido, desapertou a corda com um talismã que, como mulher prevenida, trazia à cintura. Convenceu Priscila a tomar a bebida. A grávida aquietou-se um pouco. À medida que o tempo passava, as contracções sucediam-se entre espaços mais curtos, mas mais prolongadas. E, com elas, os temores e ansiedades da parturiente, que não parava de queixar-se de dores nas costas, na barriga e até nas pernas. Nada que Valéria desconhecesse, na sua sabedoria doméstica. Vá lá, lembro-me muito bem do seu nascimento! Também fez a sua mãe sofrer, mas teve um final feliz!» In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.

Cortesia de PEditora/JDACT