quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

As Ondas. Virgínia Woolf. «Olha, ali está a cómoda. É melhor sair destas águas. Mas elas amontoam-se à minha volta, arrastam-se por entre os seus grandes ombros»

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(…) A mrs. Constable, embrulhada numa toalha, pega na sua esponja cor de limão e mergulha-a na água; aquela ganha uma aparência achocolatada; pinga; e, segurando-a bem por cima de mim, espreme-a. A água corre pelo meio das minhas costas. Sinto picadas brilhantes por toda a parte. Estou coberto por carne quente. As minhas fendas secas estão agora molhadas; o meu corpo frio foi aquecido; está inundado e brilhante. A água desliza por mim e ensopa-me como a uma enguia. Vejo-me agora envolto em toalhas quentes, e a sua superfície rugosa faz com que o meu sangue ronrone quando me esfrego. No topo do meu cérebro formam-se sensações ricas e pesadas; o dia vai-se escoando, as matas; e Elvedon; a Susan e a pomba. Escorrendo pelas paredes da mente, o dia esvai-se, copioso, resplandecente. Aperto o pijama e deito-me por baixo deste fino lençol, flutuando numa luz pálida que lembra uma película de água que me chegou aos olhos trazida por uma vaga. Ouço muito para lá dela, um som distante e fraco, o começo de um cântico; rodas, cães; homens a gritar; sinos de igreja; o começo de um cântico. No momento em que dobro o vestido, disse Rhoda, ponho de parte o desejo impossível de ser a Susan, de ser a Jinny. Contudo, sei que vou esticar os pés para que possam tocar na barra da cama; quando a tocar, ficarei mais segura por sentir qualquer coisa de sólido. Agora, já não me posso afundar, agora, já não posso cair através do lençol. Agora, estendo o corpo neste frágil colchão e fico suspensa. Estou por cima da terra. Já não estou de pé, já não me podem derrubar nem estragar. E tudo é mole, maleável. As paredes e os armários tornam-se muito claros e dobram os cantos amarelados, no topo dos quais brilha um espelho pálido. Fora de mim, a minha mente pode divagar. Penso na armada que deixei a vogar nas ondas. Estou livre de contactos e colisões. Navego sozinha por baixo dos rochedos brancos. Oh, mas estou-me a afundar, a cair! Aquilo é o canto do armário; isto é o espelho do quarto das crianças. Porém, eles distendem-se, alongam-se. Afundo-me nas plumas negras do sono; são asas pesadas aquilo que tenho pregado aos olhos. Viajando através da escuridão, vejo os compridos canteiros, e, de repente, mrs. Constable aparece por detrás da erva alta para dizer que a minha tia me veio buscar de carruagem. Monto; escapo; elevo-me nos ares, saltando com as minhas botas de saltos de mola. Todavia, acabo por cair na carruagem que está à porta, onde ela se senta abanando as plumas amarelas, os olhos tão duros como berlindes gelados. Oh, desperto do meu sonho!
Olha, ali está a cómoda. É melhor sair destas águas. Mas elas amontoam-se à minha volta, arrastam-se por entre os seus grandes ombros; fazem-me virar; fazem-me tombar; fazem-me estender por entre estas luzes esguias, estas ondas enormes, estes caminhos sem fim, com gente a perseguir-me, a perseguir-me. O Sol elevou-se um pouco mais. Ondas azuis, ondas verdes, todas elas se abrem num rápido leque por sobre a praia, contornando o pontão coberto por azevinho-do-mar e deixando pequenas poças de luz aqui e ali, espalhadas na areia. Deixam atrás de si uma ténue linha desmaiada. As rochas que antes eram ténues e de contornos mal definidos, são agora marcadas por fendas vermelhas. A erva tinge-se de riscas sombrias, e o orvalho, dançando na ponta das flores e das árvores, transformou o jardim num mosaico composto por brilhos isolados que ainda não constituem um todo. As aves, com os peitos manchados de rosa e amarelo, ensaiam agora um ou outro acorde em conjunto, de forma selvagem, como grupos de patinadores, até acabarem por se calar subitamente, afastando-se. O Sol fez poisar lâminas ainda mais largas na casa. A luz toca em qualquer coisa verde poisada no canto da janela, transformando-a num pedaço de esmeralda, numa gruta de um verde puro semelhante a um fruto suave. Tornou mais nítidos os contornos das mesas e das cadeiras, traçando fios dourados nas toalhas brancas». In Virgínia Woolf, 1931, colecção Mil Folhas, Relógio d’ Água, 2002, 2015, ISBN 978-989-641-526-6.

Cortesia de Relógiod’Água/JDACT