sábado, 27 de janeiro de 2018

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «Leonor consegue a muito custo que a mãe a deixe ir com Brites buscar os doces encomendados ao Convento das Inglesinhas»

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1754-1758
«(…) Como se chama, senhor meu Pai, aquela estrela com asas? Pó de estrela a fazer-se voo, poalha de luz a fazer-se sinal. E eu, espreitando pelo óculo sem observar o que ela, apenas no reparo a esmo, distingue a olho nu, reinvento o que penso conhecer, tentando adivinhar a partir da sua descrição, confundindo o que ela julga ver com aquilo que inventa. Mas a predilecção da minha filha vai para as estrelas cadentes, precipitando-se na sua vertigem e queda de chama lá no alto. Onde a Estrela Polar nos guia pelos caminhos da terra e do mar, a última da cauda da Ursa Menor afastada da sua floresta de árvores apagadas depois do escurecer. E Leonor ri encantada com aquela aventura, melhor do que as histórias de fadas, estrelas como espelhos onde o sol se reflecte, garante-se, e ela acreditando em mim aceita, crendo saber eu tudo o que diz respeito aos orbes celestes. Como se chama, senhor meu Pai, aquela estrela com asas? Tento em vão sossegar a sede de instrução da minha filha, sem poder imaginar ser de Saturno que ela fala. Isso só entenderei muitos anos mais tarde, com a ajuda do telescópio de Dollon, encomendado por mim a França para a quinta de Almada. Com ele varrerei de Norte a Sul os caminhos imbricados do céu. Deste modo a fingir enganar a solidão da velhice.
Leonor consegue a muito custo que a mãe a deixe ir com Brites buscar os doces encomendados ao Convento das Inglesinhas. Batem com a pesada aldraba do grande portão que dá para a Rua de Buenos Aires, distraindo-se a menina, enquanto esperam, a olhar as corvetas, as galeotas e as faluas transportando barris de madeira, a cruzarem as águas encapeladas do Tejo, empurradas pelo vento agreste que trepa as colinas com desembaraço, limpando os ares dos fedores e dos miasmas, para se precipitar de seguida onde as duas se encontram a enrodilhar-lhes as saias, quase levando consigo o chapéu que Leonor sente a ameaçar soltar-se dos pregos de prata e do enredo enriçado dos seus cabelos revoltos. Mas a mão de Brites é mais lesta a tomá-lo pelas fitas que já deslaçam o nó de cetim escorregadio, e com elas volta a dar um laço de borboleta junto ao queixo da criança. Depois, sem mais palavras, faz soar de novo o batente de ferro na madeira velha da porta, da qual a irmã hortelã, depois de ter espreitado pelo postigo, abre as pesadas portadas a chiarem nos gonzos enferrujados, deixando-as entrar: lugar espaçoso onde o pomar e o jardim benignamente se misturam.
Seguem as três pela área mais estreita, ladeada de arbustos magros, de murta, de madressilva e avenca. Mais adiante ficam os regos das laranjeiras, das pereiras, dos limoeiros, não muito longe dos canteiros das roseiras e dos jacintos, do amaranto púrpura. Em cima do muro baixo que ladeia o mosteiro, onde se vê o portãozinho que dá para o beco das traseiras, estão vasos de amores-perfeitos, de miosótis e de sardinheiras. A Leonor, que segue cuidando evitar a gravilha para não magoar os pés mal defendidos pelos finos sapatos, chega um persistente cheiro adocicado, numa mistura de suor, de mênstruo e de fruto sovado, que a jovem freira à sua frente solta ao ondular o hábito com o passo ligeiro. Mal entram na largueza espaçosa da cozinha são apanhadas de chofre pela intensidade de novos aromas entre si entrançados: o do arroz-doce a cozer devagar no leite encorpado, o do empadão de lebre a sair do forno e o do guisado de aves. Odores a contrastarem com a delicadeza da água de rosas a ferver com açúcar, o do manjar branco e dos queijinhos do céu acabados de saírem do fogo». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT