quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

O Anatomista. Federico Andahazi. «Dava consolo para os desconsolados e guiava o caminho dos desencaminhados. Ela avançava sem obstáculos em direcção à santidade»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Trindade
«(…) Do outro lado do monte Veldo, na viela de Bocciari, perto da Santa Trindade, estava il bordello dil Fauno Rosso, a casa de pu… mais cara de Veneza, cujo esplendor não tinha concorrência em todo o Ocidente. A atracção do bordel era Mona Sofia, a pu… mais bem-cotada de Veneza e, com toda a certeza, a mais esplêndida do Ocidente. Superior, inclusive, à lendária Lenna Grifa. Assim como ela, Mona Sofia percorria as ruas de Veneza numa liteira conduzida por dois escravos mouros. Assim como Lenna Grifa, levava uma cadela da Dalmácia aos pés da liteira e, no ombro, um papagaio. Como se podia constatar no catalogo di tutte le puttane del bordello con il lor prezzo, seu nome vinha impresso em letras destacadas e, em números mais notórios ainda, o preço: dez ducados, ou seja, seis ducados a mais do que a própria lendária Lenna Grifa. O catálogo, de feitura muito bem-cuidada, editado que era para viajantes selectos, nada dizia, naturalmente, sobre os seus olhos verdes como esmeraldas nem sobre os mamilos duros como amêndoas, cujo diâmetro e textura evocavam a pétala de uma flor, se houvesse, que possuísse o diâmetro e a textura dos mamilos de Mona Sofia. Nada dizia sobre as suas coxas firmes de animal, torneadas como a madeira, nem sobre a sua voz de lenho ardendo. Nada dizia sobre as suas mãos que, de tão pequenas, pareciam não abranger o diâmetro de um falo, nem sobre a sua boca mínima, cuja cavidade se diria impossível de acolher o volume de uma glande inflamada. Nada dizia sobre o seu talento de pu…, capaz de levantar até um ancião desenganado. Numa madrugada de Inverno do ano 1558, pouco antes de o sol aparecer no meio das duas colunas de granito, trazido da Síria e de Constantinopla, e de situar-se entre o leão alado e São Teodorico, quando os autómatos mouros da Torre do Relógio se dispunham a bater a primeira das seis badaladas, Mona Sofia acabava de despedir-se do seu último cliente, um rico comerciante de sedas. Descendo os degraus que conduziam ao pequeno átrio do bordel, o homem ajeitou a estola de lã que usava por cima do lucco, enfiou a beretta até às sobrancelhas e, espreitando pelo vão da porta, certificou-se de que nenhum passante o veria sair. Do bordel foi directo para a Santa Trindade, cujos sinos convocavam para o primeiro ofício. Mona Sofia estava com as costas cansadas. Para seu desgosto, quando puxou as cortinas de seda púrpura da janela de sua alcova, constatou que já amanhecera. Odiava ter que dormir com o burburinho que chegava da rua. Pensou que era uma boa oportunidade para aproveitar o dia. Reclinada sobre a cabeceira da cama, começou a fazer planos. Primeiro se vestiria como uma dama e iria ao ofício da catedral de São Marcos, a rigor, fazia muito tempo que não ia à missa, depois se confessaria e, livre de qualquer remorso, passaria finalmente pela Bottega dil Moro para comprar uns perfumes que havia prometido solenemente a si mesma. Continuou planeando enquanto se cobria um pouco mais com as mantas, o repouso, depois daquela noite fatigante, estava começando a baixar a sua temperatura, e fechou os olhos para pensar com mais clareza. Os sinos ainda não haviam terminado de tocar quando Mona Sofia, como todas as manhãs, adormeceu profunda e placidamente.
Naquele mesmo horário, porém em Florença, caía uma garoa fina sobre o campanário da modesta abadia de São Gabriel. Os sinos tocavam com tanta decisão que até parecia que quem lhes puxava as cordas era o obeso abade, e não as delicadas mãos de uma mulher. Entretanto, o abade ainda estava dormindo. Com a pontual devoção que todas as manhãs a tirava da cama antes da alvorada, fizesse frio ou calor, chovesse ou caísse gelo, Inês de Torremolinos pendurava-se nas cordas com a sua leve ossatura e, como se estivesse animada pelo Todo-Poderoso, conseguia mover os sinos, cujo peso superava em não menos de mil vezes o do seu feminino e imaculado corpo. Inês de Torremolinos vivia numa austeridade franciscana, apesar de ser uma das mulheres mais ricas de Florença. Primeira filha de um nobre casal espanhol, ela era muito jovem quando contraiu matrimónio com um insigne senhor florentino. De maneira que, como prescreviam as normas maritais, partiu da sua Castela natal para ir morar no palácio do cônjuge, em Florença. Quis a fatalidade que Inês enviuvasse sem dar ao marido um elo na sua nobre genealogia: pariu três filhas mulheres e nenhum varão.
Viúva muito jovem, tudo o que Inês tinha era: o pesar por não ter engendrado um menino, uns poucos olivares, vinhas, castelos, dinheiro e uma alma devota e caridosa. De modo que decidiu, para esquecer a sua mágoa e remediar a culpa que tinha em memória do marido, converter em dinheiro todos os bens herdados do finado, em Florença, e do seu defunto pai, em Castela, para construir um mosteiro. Assim, ficaria para sempre unida ao esposo imortal por meio de uma existência de pureza e celibato, e dedicaria a vida a servir aos filhos homens que o seu ventre não soubera engendrar: a comunidade monástica e os pobres. E assim fez. Inês parecia uma mulher feliz. Tinha um olhar franciscano que irradiava paz e sossego. As suas palavras eram sempre um bálsamo para os atormentados. Dava consolo para os desconsolados e guiava o caminho dos desencaminhados. Ela avançava sem obstáculos em direcção à santidade». In Federico Andahazi, O Anatomista, 1997, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 1998,  ISBN 978-972-232-362-8.

Cortesia de EPresença/JDACT