domingo, 22 de março de 2020

A Casa do Pó. Fernando Campos. «… sinos e ladainha que me azoam e zunem nos ouvidos, me entontecem o cérebro, me ouram a pontos de um instante me ter de apoiar a Diogo, que não dá conta da minha tontura»

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A Letra Pitagórica
«(…) Seguem-se duas mulheres, também vestidas de branco e com círios cujas chamas lhes tingem as faces exangues com laivos de cera cadavérica. Choram discretamente e não é possível abafarem-se-lhes os ais e os gritos de aflição. Recebe-os do alcaide o meirinho, com suas justiças, que ali mesmo os fazem ajoelhar diante do Crucifixo dado a beijar. Colocam-nos, depois, no lugar que lhes cabe na procissão: à frente do Crucifixo. Atrás deste postam-se uns outros oficiais segurando um caixão com os ossos de um padecente que não havia resistido ao cárcere. Dois meirinhos trazem as efígies em corpo inteiro de dois cristãos-novos, um que tinha conseguido fugir para o estrangeiro e outro que havia morrido. Vem depois um homem ainda novo mas tão desfalecido, tão desfeito pelas torturas, cujos sinais são bem visíveis nos dedos das mãos, ensanguentados e torcidos, que dois meirinhos têm de o amparar, um de cada lado, obrigando-o a caminhar penosamente. Os sinos parecem passar a segundo plano, agora que os capelães de uma das alas começam a entoar a ladainha Kyrie, eléison, respondendo os da outra Christe, eléison, sinos e ladainha que me azoam e zunem nos ouvidos, me entontecem o cérebro, me ouram a pontos de um instante me ter de apoiar a Diogo, que não dá conta da minha tontura. A procissão recomeça a andar, na mesma ordem porque ali chegou, com a única diferença de que os quatro irmãos que vêm atrás do Crucifixo passam para a frente, cedendo o seu lugar aos últimos padecentes, que são os relaxados em carne. Mas a partir daí tudo chega até mim como um pesadelo longínquo, em que as formas, as cores, os sons se distorcem constantemente, se misturam no tempo e no espaço, se desmembram e aparecem-me isolados, ou se combinam em ligações aberrantes... Christe, audinos, cantam as vozes dos padres e logo o ricto de um esgar de dor se destaca daquele amálgama de gente, de círios e tocheiras, e vem, concreto como pedra arremessada, ao encontro da minha retina, imediatamente seguido por retalhos de cores e formas de túnicas, hábitos, castanhos, brancos, escapulários pretos, sobrepelizes de renda, estolas de ouro, negras carapuças de rebuço tapando caras, sambenitos com labaredas vermelhas... Christe exaudi nos, ais e gritos, mãos de frades que avançam de crucifixo em punho a consolar os padecentes, caretas de ódio e apupos da população enfurecida: Sancta Maria, ora pro eis... Ora pro eis! repito eu a Diogo, como em sonho, roga por eles e não pro nobis, por nós e pela nossa loucura. Vamos daqui, irmão, que me estomagam estas cenas. Esperasse um pouco. Olhasse! Era imprudente retirar-me agora.
O pesadelo continua. Põem-se todos de joelhos ao passarem à porta de uma igreja e o grito imenso, angustioso, reboa no silêncio e nos meus ouvidos: Senhor Deus, misericórdia! Os pés do Crucifixo e os lábios lívidos de um desgraçado a beijá-los espumando; o largo grande da cidade cheio de gente; a tribuna de honra com o inquisidor-geral a presidir, ladeado das caras severas, insensíveis, dos inquisidores; a voz de um pregoeiro: justiça que manda fazer el-rei nosso senhor, manda queimar em estátua ao cristão-novo Jacob, físico de Tavira, impenitente e relapso...; Diogo que me segura para eu não cair desfalecido, olhando no meio da praça as chamas a envolverem as duas efígies dos judeus; a cabeça descaída sobre o peito do padecente atado a um poste no centro da pira; labaredas, fumo, cheiro a carne assada e ossos calcinados; os sinos a ulularem plangentes; frases soltas de um frade a vociferar imprecações de Inferno do alto de um púlpito improvisado; olhos esbugalhados de terror a contemplarem aquele homem transformado em tição ardente; algozes de bioco negro revirando raiadas órbitas de ódio de olhos que espreitam as vítimas; a voz do promotor frei Cosme lendo retalhos de sentenças: ... acusado de ledor da Bíblia e de possuir em sua casa uma mandrágora..., condenado a abjurar com penitência..., acusadas de feitiçaria..., condenadas a prisão indefinida..., culpados de judaísmo..., relapso..., relaxado em carne...» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT