quinta-feira, 19 de março de 2020

O Segredo da Rainha Velha. Fina D’Armada. «Era uma linda manhã de céu azul em que o Verão não desmentia o calor e luminosidade que atravessava a airosa cidade de Lisboa. As águas do Tejo espelhavam ao fundo, com barcos de velas enfunadas e por enfunar»

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Lisboa, 15 de Agosto de 1433
«(…) Os números, logo os sete, e o enigma dos astros engrossavam a superstição que percorria as mentes como uma nuvem mensageira de maus presságios. A pressa do médico também surpreendeu os que estavam no terreiro do palácio de Alcáçova, dentro dos muros. Algumas conversas ficaram suspensas porque os olhos dos distintos convidados se puseram a seguir os passos do fidalgo judeu. Todos estavam vestidos com a melhor roupagem. As jóias, as espadas, os sapatos e veludos reluziam ao sol como os arreios dos cavalos. Tinham saído das arcas, cansando as mãos dos criados, para aquele momento solene, a que o país não assistia há 48 anos.
Era uma linda manhã de céu azul em que o Verão não desmentia o calor e luminosidade que atravessava a airosa cidade de Lisboa. As águas do Tejo espelhavam ao fundo, com barcos de velas enfunadas e por enfunar. Reflexos luminosos raiavam da torre das igrejas, das muralhas e das caras dos senhores ilustres que, devido aos trajes de cerimónia que envergavam, transpiravam como os cavalos. A pressa do físico, ao desviar-se de um cão que vinha da cozinha com um osso, não se sabia se roubado se oferecido pelo trinchador, fê-lo embater no infante Henrique que conversava, naquele momento, com o primeiro governador de Ceuta. Esse governador, Pedro Meneses, tinha vindo ao reino para esquecer a morte da esposa. Fora a segunda que o destino lhe dera, Beatriz Coutinha, por quem perdidamente se apaixonara e ficara incapaz de governar a praça. Já ia para três anos e ainda não tivera coragem de regressar ao local onde perdera o seu grande amor. Como era alferes-mor do reino, competia-lhe naquela cerimónia empunhar a bandeira real e hasteá-la em suas mãos, à direita do futuro monarca.
Que aconteceu, mestre Guedelha?, perguntou o infante Henrique surpreso. Grande acontecimento devia ter ocorrido para o físico aparentar aquele ar desnorteado. Perdoai, Senhor Infante, preciso de falar com o novo monarca com urgência. Tem de ser agora. Aconteceu alguma coisa ao Senhor meu irmão?, quis saber o infante, inquieto e preocupado, mas ficou sem resposta. Pode acontecer uma desgraça, Senhor, se o futuro rei não me ouvir. Henrique tinha visto o irmão de manhãzinha e parecera-lhe realmente muito abatido. O pai de todos deixara um próspero país, com a conquista de Ceuta, a nobreza pacificada e barcos no mar levando e trazendo mercadorias. Por essas ondas, já tinham partido homens e mulheres para colonizar e explorar as ilhas atlânticas, mudando paisagens e vidas. O açúcar começava a dar lucro e a custear novas viagens para a passagem do mítico cabo Bojador. O País alastrava, alargava os braços e os sonhos para o oceano e para África. Ele bem sabia, o infante Henrique, que tudo dirigia e administrava.
Assim, mal o galo cantara, o infante Duarte, como homem sensato e amigo de seus povos, tomou dos irmãos conselho sobre a maneira que ao diante havia de ter como Príncipe mui Católico e prudente. Compareceram Henrique, João e Fernando, o mais moço. O irmão bastardo, Afonso, conde de Barcelos, que casara em tempos com Beatriz Pereira Alvim, a filha de Nuno Álvares Pereira, estava nas suas terras do Norte. E o infante Pedro não comparecera, não chegara a tempo, vindo de Coimbra. Soube-se depois que, quando recebeu o recado da doença de seu pai e se adivinhava o fim da sua vida que fora gloriosa, partiu a galope da cidade do Mondego. Ia a cavalgar em Leiria quando lhe noticiaram o desenlace. Pedro, como verificou que já não chegaria a tempo da aclamação, nem de ver seu pai antes de ser encerrado num caixão de chumbo, decidiu então escrever uma carta a seu irmão Duarte com alguns conselhos de governação. O príncipe herdeiro queria que, na espinhosa missão que o destino lhe pusera nas mãos, os irmãos fossem seus conselheiros e nunca o abandonassem.
A irmã, infanta dona Isabel, também sempre ouvida e apreciada, havia casado três anos antes, com Filipe de Borgonha, o príncipe mais famoso da cristandade, e partira para o seu reino. O infante Duarte sentia nos ombros uma herança difícil. Sucedia a um grande Rei e confiava nos irmãos para o ajudarem na árdua missão de governar um país que rasgava os mares, acrescentando novas terras à Cristandade». In Fina D’Armada, O Segredo da Rainha Velha, Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-246-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT