terça-feira, 3 de março de 2020

O Pecado e a Honra. Maria João Câmara. «Maria Jácome tremia como varas verdes. Entrava na igreja com o coração desvairado de pavor. Sabia desde cedo, e industriada pela mãe, que o seu destino era o casamento e que nunca poderia escolher o seu noivo»

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«(…) João Lourenço, o pobre, estava ao serviço do Rei, como pajem do livro, benesse que este lhe fizera por mor da estima que tinha a Henrique Figueira. Mas El-Rei aborrecia-se de ter João Lourenço por perto e não via nele senão um empecilho. O mordomo-mor que o ocupasse, o guarda-roupa que o entretivesse, o porteiro que o levasse para longe..., é que João Lourenço era desastrado e bastante distraído. Era raro pedir-se-lhe algo que fizesse de fio a pavio, isto quando se não esquecia por completo da tarefa que deveria desempenhar, levar ou procurar o livro de horas d'El-Rei, ou segurá-lo para que Sua Alteza lesse, e ficava atarantado, levando tabefes e cascudos de várias mãos. Mas agora, longe das trafulhices do paço, no momento do casamento de seu irmão mais velho, estava feliz, saltitava de um pé para ou outro e parecia que a sua vida corria de feição, com vantagem para todos. Cruzando os olhares, os irmãos sorriram. Era uma bonomia que nenhum deles se permitia ter com mais ninguém. Quanto a Henrique, já tomara assento na igreja, perto do noivo e também aguardava serenamente. Rodrigo Figueira apercebeu-se da chegada da nubente pelo burburinho que se começou a ouvir na rua. No adro da igreja o povo aplaudia, gritavam-se votos de felicidade, as crianças em desatino corriam em todas as direcções. Nesse momento, o noivo ergueu-se, esperando que a noiva assomasse à porta do templo. A prometida vinha coberta de um manto de veludo verde-escuro, com capuz debruado a arminho. O vestido num tom de verde-claro, bordado a prata e pérolas miudinhas, brilhava ao sol. No momento em que transpôs a entrada da igreja, esse brilho diluiu-se. O cabelo de Maria, repuxado para trás, estava preso com uma coifa do mesmo tom do vestido, debruada com uma fiada de pérolas. A coifa segurava um enorme tufo de cabelo negro que chegava a meio das costas. O orgulho de sua mãe, Inês, fez com que percorresse o caminho todo, da liteira à porta da igreja, à volta da noiva, com gestos nervosos, endireitando o vestido aqui, repuxando a cauda, compondo aquela madeixa de cabelo. Tudo aquilo surgia aos olhos do noivo como um exagero, porque Maria era enfezada para todas aquelas arrecadas. Parecia muito mais atarracada! Rodrigo Figueira, sorrindo sempre, suspirou, pedindo a Deus que o ajudasse a suportar aquele dia que, no seu entender, já ia longo demais.
Maria Jácome tremia como varas verdes. Entrava na igreja com o coração desvairado de pavor. Sabia desde cedo, e industriada pela mãe, que o seu destino era o casamento e que nunca poderia escolher o seu noivo. Não tinha tido pretensões de o fazer, mas, de qualquer maneira, afigurava-se-lhe difícil dar este passo. Rodrigo Figueira, não sendo um homem belo, de cabelos cor do sol e com os olhos claros como água (como alguns que já vira na corte), era um fidalgo bastante atraente, ou razoavelmente aprazível. O corpo enxuto, mais alto do que o dela, tinha a particularidade de ter umas mãos compridas. Um rosto equilibrado, olhos de um castanho profundo e cabelos da mesma cor, cortados a direito e penteados à força de clara de ovo, para que ficassem junto ao crânio, e com uma franja pequena que lhe chegava apenas até ao meio da testa. O nariz afilado e o queixo um pouco proeminente suportavam uma boca carnuda. Sem querer, era precisamente na boca que, insistentemente, Maria fixava o olhar. Mantendo um sorriso condescendente, onde faltava a lasca de um dente incisivo, Rodrigo Figueira aguardou que a noiva chegasse ao altar, onde frei Bartolomeu iniciou de imediato o ritual e celebrou o sacramento entre os dois resignados noivos.
Seguiu-se um lauto repasto na casa do pai da noiva, animado por jograis e música. O vinho animou as hostes e todos folgaram com os noivos, os quais afinal dançaram e também riram com gosto. Mas olhando com alguma detença para Maria, podia antever-se a sua aflição. O medo do incógnito, o medo de não conseguir suportar este marido quase desconhecido, o medo de ter filhos e de não os ter. Quanto ao noivo, não havia grandes tormentas no seu espírito. Aproveitava o momento de folguedo e deixava que a festa seguisse o seu curso. Amanhã seria outro dia.
Ao final da tarde, os convivas, encharcados em suor, de estômago cheio, como poucas vezes o podiam ter, e inebriados pelo vinho, começaram a exigir que os noivos se recolhessem, batendo ruidosamente com os pés no chão e tocando com os copos uns nos outros. Ouviam-se gargalhadas sôfregas dos homens e risinhos escondidos das mulheres mais jovens. As solteiras olhavam o noivo com curiosidade e os solteiros invejavam-no. O ruído começou a ser ensurdecedor. Inês fez sinal para que sua filha se preparasse e não quis ver a sua cara de aflição. Então, Rodrigo Figueira pegou na mão da noiva com cuidado e, entre caretas e risadas das amigas, momices e gestos obscenos feitos à socapa pelos amigos, os noivos deixaram o salão e dirigiram-se para o quarto nupcial.
A câmara, afastada do bulício da festa, fora limpa e preparada com cuidado pelas criadas. Um candelabro de seis velas foi aceso por uma delas, que imediatamente se retirou. Cheirava a cera. Num leito de dossel de rico brocado veneziano, feito com lençóis de linho, alvos como poucos, um colchão e travesseiros novos e macios, Maria Jácome, filha da alentejana, deixou que os ventos do Atlântico irrompessem no seu ventre e terá sido nesse mesmo dia que concebeu o seu primeiro varão. Passava já da meia-noite e ainda se ouviam os sons de festa: gargalhadas e conversas, música e danças. De vez em quando, um som de vidro partido ou de escudela no chão, e mais gargalhadas. Até que os ruídos do festejo começaram a esmorecer. E, no rescaldo do bródio, apenas os ébrios permaneciam no salão, estendidos nos coxins, como retratos da sua própria miséria, enquanto os criados aproveitavam para sonegar os restos de comida espalhados, podendo fazer, eles próprios, o seu banquete». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.

Cortesia de OdoLivro/JDACT