sexta-feira, 6 de março de 2020

A Maldição do Marquês. Tiago Rebelo. «Com a morte da condessa, o marido atravessara uma época particularmente difícil, custara-lhe muito aceitar a tragédia, fechara-se em casa a vaguear pelos corredores louco de dor…»

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«(…) A mãezinha expirara minutos depois do parto, vítima de uma complicação inesperada, uma hemorragia que os médicos não puderam conter. Desde então, nunca mais ninguém vira o conde interessar-se por outra mulher. Monsieur Marcel instalou-se na antecâmara do quarto de dona Carlota Justina com todos os seus frasquinhos mágicos de pós coloridos, de perfumes, os papelinhos, os instrumentos para encanudar o cabelo, para armar um penteado de uma altura inacreditável, cheio de laçarotes e flores. Carlota Justina veio ter com ele e cumprimentaram-se com dois beijos no ar, como velhos amigos. O cabeleireiro era um íntimo dela, muito afectado, muito divertido, sempre cheio de mexericos para contar. Sabia todos os amores e todos os escândalos da Corte e não se inibia de os contar, um mimo!
Uma hora passou, enquanto monsieur Marcel trabalhava sem parar, tagarelava sem parar, cheio de espírito, erguendo a sua escultura com a cabeleira de Carlota Justina como só ele sabia fazer, como um artista criando a sua obra de arte. Por fim, subiu a um banquinho atrás da cadeira onde ela se sentava protegendo a cara com uma máscara em forma de cone bicudo e deixou cair sobre o seu cabelo uma nuvem de pó branco. E quando a nuvem assentou o artista saltou do banquinho dando gritinhos de entusiasmo e ofereceu-lhe um espelho de mão para que ela visse como estava linda. Liiiinda!!, esganiçou-se o artista. Carlota Justina, comovida com o resultado, bateu palminhas de contentamento e soltou um riso estridente, quase histérico. Monsieur Marcel foi-se, cantarolando palacete fora, radiante por ter deixado a cliente satisfeita, satisfeito consigo mesmo, convicto de que era um génio, não fosse ele o cabeleireiro mais disputado pelas mulheres mais nobres do reino. Sim, que lá ele só servia a fidalguia! Arlete, a fiel criada de Carlota Justina, confidente e cúmplice dos seus romances, tantas vezes portadora secreta dos seus recadinhos de amor, quase amiga íntima, acorreu para a ajudar a enfiar-se num impossível vestido de bambolins armado com galhos de vime para alargar o tecido nas ancas, que mal lhe permitia passar a direito por uma porta mas era tão chique e tão na moda que valia todos os incómodos.
Arlete segurou o espelho de mão em frente da patroa enquanto ela colocava delicadamente no rosto uma constelação de moscas de tafetá. Estou bem?, perguntou. Maravilhosa, disse, mostrando-se feliz por ela. Embora soubesse manter-se no seu lugar, Arlete gostava genuinamente de dona Carlota Justina. Não passava de uma rapariga simples de aldeia que viera servir na residência dos senhores condes ainda novinha, com o intuito de ajudar a cuidar da bebé recém-nascida. De modo que acompanhava Carlota Justina desde o berço e, hoje em dia, quase não se notava a diferença de idades entre as duas. Carlota Justina tinha-lhe grande estima e, não fora dona Consolação impor a devida distância entre as duas, teriam crescido como irmãs. Com a morte da condessa, o marido atravessara uma época particularmente difícil, custara-lhe muito aceitar a tragédia, fechara-se em casa a vaguear pelos corredores louco de dor, embrutecido, de barba desgrenhada. Desorientado, nem a filha bebé visitava no quarto onde montavam guarda, à vez, dona Consolação e uma Arlete que na época nem os 12 anos completara, mas que vigiava a bebé diligentemente quando a ama precisava de se ausentar, nem que fosse para comer ou dormir.
O conde, no discernimento exíguo que lhe restava, chamara dona Consolação para lhe passar a recomendação solene de se encarregar da bebé. Que não lhe falte nada, tudo..., tudo o que for necessário, disse do fundo da poltrona aquela voz taciturna e derrotada. O conde estava um farrapo e a dona Consolação não lhe restou senão aquiescer». In Tiago Rebelo, A Maldição do Marquês, Edições ASA, Grupo LeYa, 2019, ISBN 978-989-234-707-3.

Cortesia de ASA/JDACT