quinta-feira, 5 de março de 2020

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Está nos teus olhos, já to disse, e as linhas das tuas palmas o hão-de confirmar. A notícia está aí a rebentar e a espalhar-se por todo o reino. De que estás tu a falar? Estrella ergueu-se»

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Estrella
«(…) Obrigado, Estrella. Quando eu puder... Não prometesse nada, que tinha à frente muita vida madrasta a percorrer. Que desgraça tamanha! Quando quisesse desabafar, pensasse em Estrella, mesmo que estivesse longe ela tinha a caixa aberta e a alma muy ancha... Escurecia. A meia légua de uma povoação, escolheram local de acampamento num sobreiral junto de um ribeiro. As carroças fizeram muralha em redor do terreiro. Ergueram-se as tendas e não tardou que uma boa fogueira ardesse no centro do eirado e, sobre um tripé, numa grande caldeira de ferro começasse a borbulhar a cozedura. Estrella fez sentar-se Savachão num fardo de palha e Consuelo começou a desatar-lhe as ligaduras da perna e da cabeça. O rei dos ciganos dava ordens: Maurício. Vai à vila por vitualhas. O moço logo atrelou um burrico a uma pequena carroça e deitou-se a caminho. "Que mexerufada é essa que me estás a pôr na perna?, perguntou Savachão.
Não te cheira bem?, disse Consuelo, de joelhos diante da perna dele, a saia preta em roda pelo chão. Vais ficar bom e massajava de leve para não magoar. Unguento milagroso. Mas não me perguntes como se faz. Segredo. Vem já da minha avó e da avó da minha avó..., sei lá... Linda ferida, sim, senhora. Como é que arranjaste isto? E esta cabeça, meu loiraço! Andaste à esgrima com os meirinhos? Savachão olhou Estrella que, de pé, observava o tratamento. Sim. Mais ou menos isso, respondeu. Estes moços vagam por aí de noite, pelas tabernas e pelas put… e depois pegam-se uns com os outros... Telo, prestável, para não levantar dúvidas quanto aos seus hábitos e os do companheiro, ajudava Manolo a pensar os animais e a procurar lenha. Estrella agachou-se ao lado direito de Savachão e pegou-lhe na mão, afagando-lha: mi precioso, ahora te puedo leir la buena-dicha? Não, deixa!, sacudia ele a mão. ... saber lo que te espera... Olhou-a desvairado: só Deus sabe.
Está nos teus olhos, já to disse, e as linhas das tuas palmas o hão-de confirmar. A notícia está aí a rebentar e a espalhar-se por todo o reino. De que estás tu a falar? Estrella ergueu-se. Maurício chegava da vila. Apeou-se esbaforido, ciganos e ciganas rodeavam-no. Consuelo levantou-se e chegou-se a eles. Sabeis o que corre na vila? Que é? Que foi? A batalha perdida, o exército destroçado... Quem to disse? Não se fala noutra coisa. Os velhos arrepelam-se, as mulheres uivam. E o rei? Uns dizem que morreu, outros que desapareceu. Grande desgraça! A morte! O luto! Viuvez! Orfandade! Eu bem vos dizia que ele era louco, afirmava o rei dos ciganos. Telo e Manolo aproximavam-se. Que aconteceu? Perguntou Manolo. Uma multidão de vozes deu-lhe a notícia. Telo afastou-se e chegou-se a Savachão: ouviste?
Meneou que sim. Depois disse em voz baixa: temos de desaparecer quanto antes. Quanta chaga a fechar, alminha! Vai levar tempo..., disse Estrella que se aproximara. Fica, enquanto o acampamento aqui estiver. Não há melhor sítio. Savachão olhou-a hesitante. O rei dos ciganos achegava-se falando com os outros: Rei, sabeis o que vos digo?..., vale mais ser rei dos ciganitos... Se toda a cavalaria, carriagem e mais acampamento por lá ficou..., morta, ferida, pilhada, aprisionada tanta alimária, quem vai fazer bom negócio com cavalos, muares, potros, burros, digo-vos eu quem é..., e batia no peito, cá o rei dos ciganos.
Depois da ceia o acampamento adormeceu. Em respeito pelo luto, essa noite não houve descantes. De madrugada, Savachão, que estava estendido na palha, na tenda de Manolo, tocou no braço de Telo a seu lado. Levantaram-se em silêncio. Manolo ressonava. Savachão apoiou-se à muleta e saíram por detrás das carroças, junto aos animais. Quando se afastavam do acampamento, Savachão parou a olhar para trás. Estrella, de pé à boca da sua tenda, levantava o braço num adeus.

O Sapateiro Santo
O que me contais é coisa de espanto, disse o arcebispo de Espálato. Não achais, cónego Battista? O romeiro conservou a testa apoiada na mão, o pensamento alheado, enquanto o cónego respondia: como muito bem sabe Vossa Eminência, a missão sacerdotal leva o padre a conhecer as maiores alegrias e tragédias da humanidade..., buscava de longe, com método, a resposta à pergunta do prelado: ... nos alçapões da alma, as histórias mais imprevistas. Mas, desde a do rei Édipo, que, sem o saber, investiga o próprio crime, ou a do mouro Arum Al-Rachid, que sonha ser rei, nunca como agora tomara conhecimento de caso tão extraordinário como o que este infeliz está contando: um rei que, por vergonha, pusilanimidade ou covardia louca... Não digais mais, atalhou angustiado o peregrino. Poupai quem tanto tem sofrido. Desculpai, disse o cónego, compassivo. Eu não queria... Escutai o resto, que para isso vim». In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT