terça-feira, 10 de março de 2020

Eu e as Mulheres da Minha Vida. Tiago Rebelo. «Apesar de todas as dificuldades, do cansaço, de me distrair das responsabilidades do meu novo cargo no banco, que me solicitava disponibilidade e concentração totais, eu era um homem novo…»

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O Factor Bellucci
«(…) Agora, olhando para trás, não tenho dúvidas em dizer que foi um erro. E também não tenho a menor dúvida de que foi um daqueles erros muito, mas mesmo muito difíceis de evitar. A beleza de Cátia, a excitação, o sabor a vitória, tudo isso foi inebriante nos dias subsequentes à grande queca. Andava extasiado com a enormidade da minha conquista. Quer dizer, não se tratava apenas de uma mulher vulgar, gira, engraçadinha, por quem nos entusiasmamos e pode ou não acontecer irmos parar à cama dela, se não travarmos a tempo e dissermos, tenho que ir para casa senão a minha mulher mata-me. Reparem, a alcunha de Cátia no banco era Bellucci, isto não vos diz nada? Claro que os tipos mais ressabiados referiam-se a ela como a burra da Bellucci, mas todos sem excepção adorariam estar no meu lugar, se soubessem, evidentemente. Cátia não era burra, o problema de Cátia, que me favoreceu no início e me tramou no final, era a solidão. Parece um paradoxo, mas se virmos melhor não é assim tão estranho. Cátia nascera abençoada por uma beleza acima da média, podia ter-se tornado modelo internacional, actriz de cinema, apresentadora de televisão, enfim, podia ter alcançado a fama e a fortuna, mas isso não acontecera talvez por não ter vocação para nenhuma dessas profissões ou, simplesmente, porque nunca fora descoberta. Cátia vivia sozinha em Lisboa, longe da família e dos amigos e tinha um emprego banal. Era bonita, mas tímida e sem o menor jeito para usar a seu favor essa vantagem, para a esmifrar o melhor possível. Em última instância, a beleza só lhe trazia contrariedades, pois intimidava os homens e afastava-os e aguçava a inveja das mulheres. A solidão de Cátia tornou-a tão dependente de mim que começou a ser asfixiante. Sabem quando adoramos uma música linda que, a partir de certa altura, de tanto a ouvirmos passamos a achá-la enjoativa? Pois, já vejo sobrolhos levantados, não foi o melhor exemplo, Cátia era uma pessoa, não era uma música nem uma lata de Coca-Cola que deitamos fora quando já não nos apetece mais. Mas que a relação com ela transformou-se num problema de grandes proporções, isso é um facto indesmentível. E que eu não a amava, também. Eu adorava o conceito, ter um caso com a mulher mais bonita do banco, e como tal não queria abrir mão dela, mesmo sem saber o que fazer com ela. Andava baralhado e a afundar-me num problema que acabou por deixar-me numa situação impossível. Cátia não foi a única. Como se estivesse empenhado em complicar ainda mais a minha vida, comecei a sair com outra mulher. Havia um certo deslumbramento a conduzir as operações.
Apesar de todas as dificuldades, do cansaço, de me distrair das responsabilidades do meu novo cargo no banco, que me solicitava disponibilidade e concentração totais, eu era um homem novo, ou melhor, eu era como um jovem exuberante a descobrir as possibilidades da vida, a descontracção em pessoa, caminhando em cima do arame. Poder-se-ia dizer que eu entrara na crise dos quarenta, só que tudo isto estava a acontecer-me nos meus trinta e cinco, de modo que, se era esse o caso, eu tinha-me adiantado cinco anos. Mas, a avaliar pelos sintomas, era mesmo a crise dos quarenta. O meu filho acordara-me de uma longa letargia com a força de um murro na barriga, e no nariz do colega dele, e eu assustara-me com aquilo em que estava a transformar-me. O tempo estava a correr e eu, acomodado, tinha parado algures, não sabia bem onde. Os sintomas: o meu casamento não era bom nem mau, simplesmente não me incomodava, a minha mulher já não se esforçava para me seduzir e eu gostava dela mas não me entusiasmava com ela. O emprego era isso, só um emprego, um mal necessário, um lugar onde passava os dias fazendo o menos possível para não morrer de fome. Nada de carreira cheia de stress, nada de pedalar a duzentos por cento para marcar a diferença, para ultrapassar a malta toda e ser considerado o próximo tipo a promover. Em casa preferia adormecer no sofá em frente à televisão; no banco preferia bater as teclas do computador com dois dedos, fitando o ecrã como um sonâmbulo». In Tiago Rebelo, Eu e as Mulheres da Minha Vida, 2003, Edições ASA, 2016, ISBN 978-989-233-501-8.

Cortesia de EASA/JDACT