domingo, 10 de julho de 2011

Vasco Mouzinho: Santa Isabel, Rainha de Portugal. Parte 1. Canto V. «Isabel interpõe-se entre os exércitos de D. Dinis e do filho, o príncipe Afonso; Isabel exalta o amor à terra-mãe; os soldados largam as armas»


Cortesia de artvalue e ascoisassaocomosao

Santa Isabel, Rainha de Portugal
Canto V: Isabel interpõe-se entre os exércitos de D. Dinis e do filho, o príncipe Afonso; Isabel exalta o amor à terra-mãe; os soldados largam as armas.

Canto Quinto
Estão os esquadrões de fronte a fronte
E longe cada qual o temor bota,
E já se vê, pelo ar de outro horizonte,
De abuitres feros sanguinosa frota
Que, ora assombrando o vale, agora o monte,
Espera pela mísera e triste rota.
Sente Isabel; e quão dePressa pode,
A tamanho desastre logo acode.

Chegando ao duro campo, que coberto
De armada gente estava em próprio dano,
Não crendo tanto o mal que viu de perto,
Caiu no verdadeiro desengano.
Estende por aquele desconcerto
Os olhos tristes e, do peito humano,
Estas palavras lastimosas solta,
Com voz em brandas 1ágrimas envolta:

É possível que veja o mal que vejo?
A isto me trouxestes, dias tristes?
Não me levareis num melhor ensejo
Quando algü' hora alegre me sentistes.
Olhai em que parou um vão desejo,
Vós outras que também filhos paristes!
Desejei filhos, filho do Céu tive,
Que para minha pena e mágoa vive!

Qu'é isto, Portugal, que determinas?
Contra tuas entranhas te embraveces?
Quinas de Portugal, contra outras quinas
A ti próprio desamas e aborreces?
Não te move teu sangue. Não te inclinas
À tua piedade. Em sede creces
De tua desestrada, própria morte;
Contra ti mesmo te assinalas forte.

Que farás, triste filho, se te achares
C'o pai diante do sanguino braço?
E tu, pai, se c'o filho te encontrares,
Que farás nesse lastimoso passo?
Firir, crueza; e, quando atrás tornares,
Covardia; confuso, então, te faço.
Mas, ai, temo crueza nunca usada,
Que atrás não torna mais a nua espada!

Que dirão, quando virem que por nada,
Por um pedaço de pequena terra,
Que por morte há-de ser enfim herdada,
Amor e obediência se desterra?
Que seria, se fosse demandada
A parte que o Sol vê quando se encerra
No largo mar, e quando, do Oriente,
Mostra a dourada face a Ocidente?

E aquela também que longe toca
Com raio oblíquo, ou a gelada e fria
C'o Norte, ou a mais quente com a boca
Do Sul, ou quanto enfim conhece o dia,
Se a tanto isto tão pouco nos provoca,
Quão diferente então tudo seria!
Mas, ai, que digo, se co'a mesma sede
Um só ponto da terra hoje se pede!

( ... )

Vasco Mouzinho, in «Discurso sobre a vida, e morte de santa Isabel Rainha de Portugal e outras várias rimas, Lisboa 1596.

Cortesia de FCGulbenkian/JDACT